PEC das Domésticas: emblema das conquistas sociais recentes, por Cristina Reis e Vivian Moreira

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Artigo do Brasil Debate

Por Cristina Fróes de Borja Reis* e Viviane Garrido Moreira**

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2012, há 6,3 milhões de empregados domésticos no Brasil, sejam eles cozinheiros, governantas, babás, faxineiras, vigias, motoristas, jardineiros, caseiros etc. O trabalhador doméstico é aquele que presta serviços durante três ou mais dias na casa do empregador.

A aprovação da PEC 66/2012 significou incorporar o trabalhador doméstico ao Artigo 7º da Constituição, implicando conferir-lhes os direitos de jornada de trabalho de 8 horas diárias e 44 horas semanais, garantia de salário mínimo, pagamento de horas extras e adicional noturno, assistência às normas de saúde, higiene e segurança; proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão do trabalhador por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil, proibição de qualquer discriminação ao portador de deficiência.

O trabalho doméstico é, ainda, vedado a menores de 18 anos, desde o Decreto 6.481, de 12 de junho de 2008. Em agosto último, entrou em vigor a lei que prevê multa entre de R$ 402,53 até R$ 805,06 para o empregador que não assinar a carteira de trabalho do empregado doméstico.

Outras regulamentações ainda estão tramitando, como auxílio-creche, seguro para acidentes de trabalho, fundo de garantia e seguro-desemprego etc.

O trabalho doméstico é um paradigma, mesmo porque expressa diversas das desigualdades da sociedade brasileira: de gênero, de raça, de escolaridade, de rendimento.

A remuneração média dos serviços domésticos mantém-se historicamente abaixo do valor do salário mínimo no Brasil, o que estava bastante relacionado ao fato de a maioria não ter carteira assinada.

Nas regiões metropolitanas, em média, os serviços domésticos correspondem à ocupação de quase 30% das trabalhadoras (já que as mulheres respondem por cerca de 90% dessa categoria).

As empregadas domésticas negras/pardas constituem cerca de 60% do total, e na média do País recebem menos por hora trabalhada do que as não negras (R$ 3,96 e R$ 5,06 em 2011). Essas e outras razões apontam para a importância da exigência de assinatura e a multa para o descumprimento da lei.

A lei é revolucionária em muitos sentidos. Primeiro, por garantir os direitos dessas trabalhadoras. Segundo, por diminuir a assimetria de poder em prol do poder de barganha e valorização das empregadas. Terceiro, por contribuir para o amadurecimento da estrutura do mercado de trabalho.

De modo geral, a dinâmica econômica deflagrada durante o governo do Partido dos Trabalhadores, que resultou em queda do desemprego para níveis históricos e de aumento sustentado do rendimento médio da população, vem acompanhada do crescimento relativo do poder de barganha dos trabalhadores.

Considerando a posição na ocupação do trabalho principal, de 2004 para 2012 a média do rendimento do trabalhador doméstico em termos nominais foi a que mais cresceu (2,39 vezes), seguida pelos trabalhadores por conta própria (2,29), empregados (2,03) e empregadores por fim (2,02), conforme extraído da PNAD (2012). Este fator contribuiu para que as entidades de classe lograssem maior sucesso no andamento de reivindicações antigas.

A implementação de um marco legal bem delimitado, como o proposto pela PEC das Domésticas, cumpre o papel chave de ancorar um longo e complexo processo de mudança, no sentido das economias urbanas mais desenvolvidas. A realidade dessas economias, há algum tempo, desconhece faxineira atuando como cozinheira, motorista atuando como despachante, porteiro atuando como eletricista ou encanador e gorjeta atuando como pagamento. Ao cuidar da casa, as domésticas cuidam dos moradores dela e a tendência, em sociedades avançadas, é de que este serviço seja cada vez mais de luxo.

A ideia de não encarar a natureza profissional do trabalho doméstico encontra-se profundamente impressa em caracteres culturais da sociedade brasileira.

A relação senhor-escravo, no seio da atividade doméstica, imbuída de toda a intimidade que não vê as horas extras trabalhadas, a própria flexibilidade de horários e a prontidão para toda e qualquer “emergência”, encontram-se ainda presentes em nossa memória cultural e afastam consigo o conjunto de condições impessoais do trabalho profissional.

A visão ainda muito comum de que o patrão mais está “ajudando” o empregado do que efetivamente contratando os seus serviços, o autoriza moralmente a dispor desse serviço com a flexibilidade que se espera como recompensa. Uma considerável inversão de valores duplamente acatada entre as partes.

Como conclusão, a progressiva redução do abismo de remuneração entre trabalhadores “braçais” e “intelectuais” evidencia a incompatibilidade entre dois modelos de sociedade: o de uma estrutura social assimétrica e funcional em equilíbrio e o da repartição de iguais oportunidades.

Enquanto a figura do senhor “ajuda” a do empregado, mantém-se o equilíbrio funcional com as duas classes acomodadas: se, de um lado, o senhor não se exime de uma suposta responsabilidade moral de repartir o excedente que carrega, de outro, o empregado também não reivindica mudanças que desequilibrem o status quo.

Esse equilíbrio funcional acomoda a desigualdade numa zona de conforto relativo. Por isso a importância de medidas como a PEC das Domésticas: arrancar as raízes culturais que historicamente dividem a sociedade brasileira em classes distantes implica no verdadeiro peso financeiro de arcar com todas as condições trabalhistas que uma relação profissional exige.

Implica o reconhecimento de que igualdade não se atinge com favores, mas com incorporação e exigência legal de direitos.

* Cristina Fróes de Borja Reis é professora da UFABC, doutora em Economia pela UFRJ

** Vivian Garrido Moreira é doutora em Economia pela USP

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