Democracia e campanhas eleitorais: o montante importa tanto ou mais do que a fonte do financiamento

Especial para o Jornal GGN

Mesmo que o tema da reforma política esteja encontrando dificuldades para ser retomado na agenda governamental do momento, a discussão de novas regras de financiamento de campanha eleitorais é urgente para o país. As eleições são as instituições mais importantes de uma ordem democrática: além de realizarem o princípio da soberania popular, são decisivas para o controle dos governantes, evitando possíveis abusos de poder. Em uma sociedade capitalista como a nossa, o poder econômico, com sua influência desmesurada sobre os governos, é uma das fontes mais graves de distorção dos princípios de igualdade e liberdade. Portanto, regras de financiamento das campanhas eleitorais determinam o funcionamento da democracia.

No Brasil atual, a discussão tem se focado, sobretudo, na origem dos recursos a financiar as campanhas, ou seja, quem pode ou deve bancá-las: financiamento apenas privado, financiamento exclusivamente público ou misto? Atrás dessas alternativas debatem-se mecanismos institucionais para reduzir as possibilidades de corrupção e igualar as chances da competição, reduzindo o peso do poder econômico, tornando-a mais justa.

Todavia, para que tais objetivos sejam contemplados, é necessário olhar também para outras dimensões do processo, não suficientemente enfatizadas, tais como os limites de gastos, os tetos de arrecadação e a elevação crescente dos custos das campanhas, ou seja, é importante discutir também o quanto se doa e o quanto se arrecada. Essas questões têm impactos muito graves para a ordem democrática por várias razões.

O artigo 17-A da Lei 9.504/97 já prevê que o Congresso Nacional deve aprovar, a cada ano eleitoral, lei fixando tetos de arrecadação (iguais para todos os partidos) para cada cargo em disputa.  Interesses partidários explicam porque tal lei jamais foi aprovada, permitindo que se transfira a cada eleição a responsabilidade de fixar os próprios tetos a cada partido. Os grandes partidos querem elevá-los (e assim, criam barreiras de entrada para os demais) e os pequenos obviamente desejam reduzi-los. Portanto, a mudança dessa sistemática (com o estabelecimento de tetos ou limites de arrecadação iguais para todos os partido) permitiria evitar assimetrias nas chances de competição entre eles. E também implicaria a criação de barreira institucional para elevação dos recursos disponíveis às campanhas e o resultante encarecimento das campanhas como se indicará mais adiante.

Outra questão crucial é a limitação das doações (tanto para pessoas físicas como para jurídicas) em um teto fixo. Hoje, nossa lei prevê que os limites de doação sejam calculados em função da renda ou faturamento do doador. Em outras palavras, quem tem mais, está legalmente autorizado a influenciar mais as eleições. Essa prática, no limite, pode configurar uma situação em que uma grande empresa ou um grande doador individual torne-se o “dono” de um mandato (pois foi o maior financiador do candidato eleito). Afasta-se, assim, a esdrúxula regra que sanciona ou legitima a influência do mais rico, que pode doar mais.  Por fim, mas não menos importante, a existência de teto fixo para todas as doações ajudaria a reduzir os estímulos à corrupção, especialmente por meio do chamado “caixa dois”. Tudo isso não prescinde, claro, do aperfeiçoamento dos sistemas  de fiscalizações, tornando o controle da corrupção  mais eficiente.

A propósito cabe indicar que nos últimos anos estamos assistindo a um processo de significativo avanço nas ações da Justiça Eleitoral no Brasil. Com o uso de servidores experientes, emprestados de órgãos como os Tribunais de Contas, a Justiça Eleitoral tem tentado fechar o cerco sobre as doações e despesas não registradas. Através de procedimentos de circularização, exige-se que doadores e fornecedores de bens e serviços eleitorais informem a Justiça Eleitoral, em tempo real, as doações realizadas e os serviços e bens fornecidos. O cruzamento destes dados permite descobrir eventuais lacunas nas prestações de contas dos candidatos. Além disso, vistorias in loco por agentes da Justiça Eleitoral em eventos e comitês eleitorais, feitas por amostragem, têm contribuído para identificar falhas nas prestações e forçar candidatos e partidos a cumprir melhor o regramento eleitoral.

Com relação aos custos das campanhas, sabe-se que esses têm crescido exponencialmente a cada eleição e de forma sistemática.  Dados da Justiça Eleitoral indicam, por exemplo, que a média de arrecadação dos dois candidatos que foram ao segundo turno das eleições presidenciais passou de vinte e cinco milhões de reais em 2002, para oitenta milhões de reais em 2006, chegando a cento e vinte e um milhões de reais em 2010. Várias razões podem explicar esse crescimento. Mudanças na legislação eleitoral, que passou a exigir a formalização de despesas antes não registradas, a monetização de serviços ou bens antes providos pela própria militância partidária, além de avanços tecnológicos que têm permitido uso de métodos mais sofisticados de marketing eleitoral, com pesquisas de opinião, grupos focais etc., tudo isso responde pela elevação sistemática dos custos.

Se reduzir custos das campanhas é desejável, certas escolhas do sistema eleitoral serão necessárias porque elas têm impactos diretos nos gastos. O sistema proporcional com lista fechada parece ser o mais conveniente também para esse fim. Mesmo que ele possa apresentar, de um lado, o inconveniente (aliás, nenhuma escolha institucional deixa de ter) que é o reforço das cúpulas partidárias, o chamado “caciquismo” dentro dos partidos, a lista fechada gera, por outro lado, enormes vantagens para a democracia: além da redução dos custos das campanhas, eleva a qualidade do debate eleitoral, centrando-o em programas ou propostas de partido e não em qualidade individuais de candidatos isolados e, sobretudo, reforça o peso fundamental dos partidos como instituição que agrega e articula demandas, ideais e interesses existentes na sociedade e que sem eles se apresentam de forma fragmentada e sujeitas mais facilmente a apelos demagógicos ou, no outro extremo, autoritários. A propósito, é bom relembrar que as manifestações de junho passado no Brasil apresentaram slogans e práticas de rejeição aos partidos e à própria política, revelando com isso, infelizmente, um lado pouco democrático de tal processo.     

Com relação ao problema eventual do “caciquismo” partidário resultante da lista fechada, uma solução institucional poderia ser o desenho em discussão atualmente na Espanha, pelo qual se exige dos partidos políticos práticas de democratização de suas gestões, para se garantir o financiamento público. Assim, partidos que optassem por manter fechadas suas “caixas-pretas”, deixariam de receber verbas públicas.

 Em suma, mesmo sabendo que as grandes bancadas parlamentares dificilmente estabelecerão regras de autorrestrição à sua própria posição na disputa eleitoral e que os grupos econômicos e políticos mais poderosos resistirão a movimentos para reduzir sua influência nas decisões governamentais, é imprescindível incorporar no debate público sobre o financiamento das campanhas o tema dos limites para doações, os tetos para a arrecadação e também a própria redefinição do percentual de distribuição dos fundos partidários, que ajudam a perpetuar os grandes partidos de hoje e dificultam a oxigenação do sistema partidário por novas forças políticas. Em outras palavras, se o financiamento público de campanhas tem fundamentos democráticos legítimos de igualação de oportunidades entre os competidores e redução do peso do poder econômico, o estabelecimento de limites para gastos e arrecadação também tem papel relevante e inclusive ajudaria a contrabalançar pressões contrárias ao custeio de eleições e partidos com recursos orçamentários em quadro sempre presente de escassez e de necessidade de investir em políticas públicas demandadas crescentemente pela sociedade.

* professora titular da FGV/SP e ** mestrando em Direito Penal na USP
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