O encontro de Pessoa e Sá-Carneiro

Enviado por Jota A. Botelho

CONVERSA ACABADA

No início do século XX a sociedade portuguesa se encontrava numa profunda crise política e moral (uma confusa República com restos de uma Monarquia apodrecida), houve então um encontro e um momento de catástrofe: Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro reinventam a língua e o modo de dizer, pagando os riscos dessa aventura. Um rebenta a solidão no fogo dos heterônimos que lhe permitem prolongar a existência; o outro despedaça o corpo e a própria vida na vertigem dispersa de poemas e novelas. Saiba da história desse encontro, os textos, a amizade e a morte no filme Conversa Acabada.

Conversa Acabada é o primeiro longa-metragem de ficção assinada por João Botelho que, imediatamente, se torna um dos filmes de culto do cinema português. Nele, o realizador, deu voz e corpo aos dois maiores poetas do Modernismo português, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, trazendo à ribalta alguns dos textos fundamentais de ambos e, também, as cartas trocadas entre eles, embora amputadas pela perda da maioria das cartas enviadas por Fernando Pessoa, o que abre espaço a uma narrativa mais aberta e precária, propiciadora à imaginação do espectador. O encontro fulgurante entre estes dois poetas, um, Mário de Sá-Carneiro, cometa breve e incandescente; o outro, Fernando Pessoa, criador de constelações de heterônimos, marcou definitivamente a arte e a literatura portuguesas, criando uma espécie de supernova que iluminou, e quase cegou, a poesia vindoura. Ainda mal a revolução republicana de 1910 balbuciava os primeiros acontecimentos e já o país acordava para o ato escandaloso que foi a publicação da revista Orpheu, projeto que teve como mentores principais os dois poetas, mas que reuniu outras figuras, Almada Negreiros; Santa-Rita Pintor; Ângelo de Lima, internado em Rilhafoles (Hospital Miguel Bombarda), etc., que atearam um incêndio nas consciências anestesiadas da cultura e da arte. 


Pessoa e Sá-Carneiro e o lançamento da Revista Orpheu, um marco do modernismo em Portugal.

Desde 1912 até 1916, ano da morte de Sá-Carneiro, a relação entre ambos rapidamente se constitui como uma das amizades mais poderosas e absolutas de que há memória entre dois poetas. Sá-Carneiro é o heterônimo que Fernando Pessoa nunca criou, porque já era real e, se havia alguém capaz de compreender esse “não ser eu nem o outro” era justamente Fernando Pessoa, que, nas cartas latejantes e suplicantes de Sá-Carneiro, enviadas de Paris, terá sentido latejar a sua própria consciência na ânsia de ser outros eus-heterônimos. O filme não é um filme biográfico. É um filme que aceita a palavra como mais poderosa que a imagem: são a palavra e a poesia dos dois poetas que são a câmara de filmar, que se apoderam do filme e subjugam a imagem. Nesse sentido, o filme capta o que há de mais profundo na relação, e torna-se ele quase como a derradeira carta trocada entre ambos. A morte de Fernando Pessoa, na extrema solidão do hospital, antecede, no filme, a morte de Sá-Carneiro, na extrema solidão dum quarto de um hotel de Paris: o antes ou depois são categorias irrelevantes na cronologia que habita a intimidade e a interioridade poéticas da amizade entre ambos. Mais do que uma biografia, este filme é o poema a duas mãos, a duas vidas escrito por Fernando Pessoas e Mário de Sá-Carneiro. Quem o começou, quem o acabou, pouco interessa, mas nele João Botelho, acrescentou um ponto de exclamação e de admiração para sempre. E fê-lo, que seja permitido o paralelismo, porque os inícios da década de 80 do século passado, foram um pouco como o lançamento da revista Orpheu: também nessa altura, passados os momentos mais excitantes e vibrantes da revolução de 1974, o cinema português precisava de “novos eus”, de realizadores capazes de traduzirem em filmes a liberdade conquistada. Dessa liberdade, e da sua ficção, emergiram quase ao mesmo tempo filmes e realizadores que, por caminhos e estradas diferentes, alcatroaram, cada um à sua maneira, o cinema português, como João de César Monteiro, Manuel de Oliveira, a quem João Botelho presta homenagem, oferecendo o papel do padre no hospital, e outros. Também a partir daí, o cinema português se espalhou pelos diversos horizontes que constituem a liberdade. Até quando? É a pergunta inquietante que João Botelho fez, neste outro filme seu, o Filme do Desassossego, ao optar por exibi-lo diretamente e não aceitar os circuitos comerciais habituais de distribuição e exibição. Face à experiência negativa e trucidante em relação ao seu filme anterior, A Corte do Norte, que adapta um texto de Agustina Bessa-Luís. João Botelho optou por se meter ao caminho e levar o filme a todo o lado, exibindo-o pelas muitas salas não puramente comerciais que há espalhadas pelo país. Dantes, a chegada do circo às aldeias e mais tarde do cinema ambulante, eram acontecimentos únicos das vidas das crianças e da vida desses povoados. Hoje, as crianças não abundam nas aldeias, mas há muitas povoações, cidades e vilas, que se sentiram postas no mapa cultural por a elas ter chegado lá um filme que não morreu na capital, sem nunca de lá ter saído. Pode ser que, como Conversa Acabada, também o Filme do Desassossego, cumpra um destino de se tornar um futuro novo. Por estas e por todas as razões.
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A história desta amizade entre Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, numa ousada experiência de João Botelho, que aposta numa estilização extrema e se apóia nos poemas e cartas de Pessoa e Sá-Carneiro, tem alguns convidados especiais: Luíz Pacheco (Pessoa moribundo) e Manoel de Oliveira (o padre que dá a extrema unção a Pessoa). Em Conversa Acabada os adereços eram objetos do próprio Fernando Pessoa, como os óculos que o ator Fernando Cabral Martins usa. João Botelho, na altura em que ainda não havia uma visão pessoana, teve em sua casa a arca do poeta e as revistas Blast (órgão dos vorticista ingleses e inspiração para os heterônimos). Na maioria dos cerca de cem planos do filme usou a técnica de Syberberg da projeção frontal de imagens sobre uma tela de doze por oito metros, onde se viam fotos de Jorge Molder, pinturas de Carlos Ferreiro, cenários de Ana Jota. Na estreia em Cannes (1981), metade dos espectadores abandonou a sala durante a exibição; a outra metade aplaudiu dez minutos. João Botelho ainda voltaria ao autor em uma outra obra que, quando teve a arca em sua casa, ainda era inédita – O Livro do Desassossego, com o Filme do Desassossego, de 2010.

O filme Conversa Acabada recebeu o Prêmio Glauber Rocha e Menção Especial do Júri no Festival Internacional de Figueira da Foz, Coimbra/Portugal, em 1981, pela Federação Internacional da Imprensa Cinematográfica, e o Grande Prêmio do Festival de Cinema de Antuérpia/Bélgica, em 1982.
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Foto: João Botelho

João Botelho nasceu em Lamego/Portugal, em 11 de maio de 1949. Estudou Cinema no Conservatório Nacional de Lisboa. Foi cineclubista na cidade do Porto e em Coimbra, onde dirigiu o Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra (CITAC). Foi crítico de cinema na Gazeta da Semana e na revista M, em que foi seu fundador. Iniciou-se como realizador em 1976 com os curtas-metragens O Alto do Cobre e Um Projeto de Educação Popular. Conversa Acabada foi seu primeiro longa-metragem, realizado entre 1980/1981. 
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FILME CONVERSA ACABADA, DE JOÃO BOTELHO (1981)

https://www.youtube.com/watch?v=CIr2oCO38lg align:center
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Pesquisas: José Esteves / Prêmios e Festivais / Wikipédia – João Botelho / Cine Cartaz & DN GENTE 
Conheça mais sobre João Botelho: A imagem na obra de João Botelho 
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Jota Botelho

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  1. Filme do Desassossego

    Filme do Desassossego, realizado por João Botelho em 2010, se baseia no Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa. “Num quarto de uma casa na Rua dos Douradores em Lisboa, um homem inventa sonhos e estabelece teorias sobre eles. A própria matéria dos sonhos torna-se física, palpável, visível. O próprio texto torna-se matéria na sua sonoridade musical. E, diante dos nossos olhos, essa música sentida nos ouvidos, no cérebro e no coração, espalha-se pela rua onde vive, pela cidade que ele ama acima de tudo e pelo mundo inteiro. O Filme do Desassossego se fundamenta sobre os fragmentos de um livro infinito e cheio de armadilhas, de um resplandecer quase demente, mas de genial claridade. Um momento solar de criação de Fernando Pessoa. A solidão absoluta e perfeita do EU, sideral e sem remédio. Deus sou eu! – também escreveu Bernardo Soares -, considerado um semi-heterônimo porque, como seu próprio criador explica: ‘Não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e à afetividade’ “. 

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