Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Nossa consciência é uma ilusão no filme “Em Transe”

Por Wilson Ferreira

Uma gangue de ladrões que ao invés de assaltar um banco, tenta invadir a mente de alguém para reaver um valioso quadro de Goya perdido em uma frustrada tentativa de roubo a uma casa de leilões de artes. Com esse argumento que mistura os filmes de Nolan “A Origem” com “Amnésia”, o diretor Danny Boyle faz um interessante thriller psicológico noir no filme “Em Transe” (Trance, 2013). Boyle explora os principais ingredientes de um filme noir: homens durões, uma mulher fatal e um mundo de ilusões onde nada é o que parece ser. Nessa clássica receita de um thriller noir, Boyle acrescentou um ingrediente bem contemporâneo: a psicologia gnóstica – “Em Transe” faz uma espécie de engenharia reversa do processo de perda da nossa consciência na ilusão que conhecemos como “realidade”: quanto mais acreditamos que temos livre-arbítrio, menos percebemos que somos escravos de um estado hipnótico. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

Quatro figuras semi-nuas estão se contorcendo no ar. Três delas usam chapéus pontudos, e estão segurando a quarta contra a sua vontade. Seu rosto está contorcido em uma careta agonizante e seus captores parecem chupar sua carne e sangue. Abaixo dessa imagem horrível está uma quinta figura que se esconde sob um cobertor com os punhos estendidos numa vã tentativa de afastar o tormento que paira acima dele – ou talvez no interior da sua própria cabeça.

Esta não é uma cena do thriller psicológico de Danny Boyle Em Transe (Trance, 2013): é na verdade uma descrição do quadro chamado Bruxas no Ar do pintor espanhol Goya, pivô de toda a trama do filme que gira em torno do seu roubo. Mas lá pela metade do filme, provavelmente o espectador vai se identificar com o personagem do quadro que tem o cobertor sobre a cabeça e compreender o porquê dessa obra ser o centro de tudo: o que entendemos como realidade pode ser nada mais do que a soma de todas as impressões, sugestões ou sentimentos criados por nós ou simplesmente inseridas em nossa cabeça – acreditamos no livre-arbítrio de nossas ações e, baseado nisso, construímos nossas vidas. Mas até que ponto isso é verdade?

 

 

No filme Em Transe nada é o que parece ser. Boyle aplica essa primeira lição dos filmes noir (gênero cinematográfico de filmes policiais nos anos 1940-50 marcado pela fotografia em pb de alto contraste com personagens em atitudes cínicas em um mundo que se desfazia em ilusões), primeira referencia de onde o diretor tirou a inspiração do filme – muitos espelhos refletindo rostos fragmentados, superfícies reflexivas, planos inclinados mostrando ambientes noturnos.

O Filme

Como tal, o filme começa com uma narrativa em of de um dos protagonistas, Simon (James McAvoy), um leiloeiro de obras de arte em Londres. Ele explica para o espectador todos os protocolos de segurança que envolvem obras de arte em uma casa de leilões. Simon parece um narrador confiável: ele olha para nós, é bonito, bem sucedido com o seu sotaque escocês… Em contraponto está o violento Frank (Vincent Cassel) e sua gangue que pretende roubar a obra de Goya em pleno leilão. Mas algo sai errado no plano: descobrimos que Simon era um dos membros da ação, mas ele é golpeado na cabeça por Frank para arrancar dele o valioso quadro de Goya.

Sem saber, Frank leva apenas a moldura do quadro. A tela fora arrancada minutos antes e escondida por Simon, que retorna do estado de coma no hospital sem conseguir lembrar onde a escondeu.  Simon não consegue lembrar, mas o segredo ainda está lá, em algum lugar na cabeça. Como resgatá-lo?

Boyle introduz na história o segundo elemento de um filme noir: a femme fatale. Frank tem uma ideia: chamar uma hipnoterapeuta – através da hipnose, resgatar a memória vital para os seus planos. A atraente e misteriosa Dra. Elizabeth Lamb (Rosario Dawson) vai proporcionar o interessante argumento do filme: ao invés de vermos uma quadrilha que tenta assaltar um banco, vemos ladrões que tentam invadir a mente de alguém.

“Bruxas no Ar” (1797-98) de Goya

A partir desse momento, Em Transe claramente começa fazer um mix de temas dos filmes A Origem (Inception, 2010) e Amnésia (Memento, 2000) do diretor Christopher Nolan. O ritmo do filme começa a ficar mais frenético, cenas dos transes hipnóticos e da realidade se misturam e, aos poucos, as primeiras impressões que tínhamos do início do filme (o narrador confiável e bonito, a gangue de vilões decididos etc.) começa a ser desconstruída em uma outra narrativa que começa a ser desvendada de trás para frente.

A desconstrução noir

Assim como em todo filme noir, os homens durões parecem ter o controle de tudo, mas por trás das ilusões esconde-se o poder de sedução de uma mulher fatal capaz de levar todos à destruição de forma sutil e supreendente.

Em Transe é um thriller noir e psicológico que a cada sequência parece desconstruir todas a certezas que tínhamos da sequência anterior. A desconstrução psicológica da narrativa chega a tal ponto que coloca em xeque a própria liberdade de arbítrio dos próprios protagonistas do filme: Frank e sua gangue são durões, decididos e planejaram tudo meticulosamente, lembrando bastante os personagens de Guy Ritchie dos filmes como em Snatch – Porcos e Diamantes e Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes. Mas será que todas as suas decisões foram, de alguma maneira, inseridas anteriormente nas suas mentes por alguém? A hipnoterapeuta atraente e fatal estaria por trás disso?

Dessa forma Em Transe deixa de ser um thriller comum para se enquadrar em uma trama psicológica gnóstica. A desconstrução das motivações por trás do roubo do quadro de Goya chega ao próprio questionamento daquilo que entendemos como realidade – a realidade pode ser construída a partir da soma de medos, culpa, dúvidas, ressentimentos que podem acabar nos aprisionando.

Quando acreditamos estar agindo racionalmente e em plexo exercício do nosso livre-arbítrio, é quando não conseguimos ter consciência das verdadeiras motivações que foram inseridas em nossas mentes.

Os estados de consciência

 

Para a psicologia gnóstica, há quatro estados possíveis de consciência com diferentes graus entre eles, sendo que a média das pessoas consegue ter acesso apenas a dois. E no filme Em Transe, todos esses estados são abordados:

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

2 Comentários

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  1. Reflexos

    A muito, muito tempo, estava estudando sobre IA e me veio a questão fundamental… O que produz a “consciência” ou a percepção da existência de si mesmo?

    Pensava sobre isso enquanto atravessava um longo corredor e ao me virar para sair por uma porta lateral de vidro vi meu reflexo… Essa era a resposta.

    A “consciência” não existe. O que existe é a metade esquerda do cérebro vendo o direito e vice versa. Ou seja, quando você acredita pensar “eu existo”, na verdade não está pensando nada. Está apenas ouvindo um outro dizer “você existe”.

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