Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
[email protected]

O gênio do Chefe Shang inspira dedo-durismo midiático na “crise hídrica”

Há quase 3 mil anos na China, Chefe Shang, dirigente na totalitária Disnastia Ch’in, criou a ardilosa tática de estímulo ao dedo-durismo generalizado entre agricultores: preocupados em vigiar seus vizinhos, esqueciam-se que estavam sob um regime de terror e autoritarismo. Desde então, o dedo-durismo passou a ser a prática recorrente nos regimes totalitários. Pois o gênio do Chefe Shang continua vivo – sob o pretexto de “exercício da cidadania” durante a chamada “crise hídrica” em São Paulo, a grande mídia vem estimulando pessoas a enviar vídeos e fotos de vizinhos que supostamente desperdiçam água. Mais uma vez a grande mídia pisa no pântano do proto-fascismo: uma suposta cruzada cívica que pode se transformar em vingança e violência por motivos oportunistas como racistas, sexistas ou político-ideológicos. Com isso, São Paulo dá mais um passo para o seu futuro distópico – uma cidade transformada em um deserto igual ao filme “Mad Max” com milícias de “fiscais da Sabesp” executando aqueles que escondem não mais gasolina, mas agora água.

Desde a explosão do nazi-fascismo no período entre guerras no século XX, a sociologia tenta entender como é possível a ascensão de regimes ou atmosferas totalitárias em países formalmente democráticos. Mais do que um sistema totalitário centralizado nos moldes de 1984 de George Orwell, o que chama a atenção é o fenômeno do totalitarismo descentralizado e difuso, com o apoio de quase toda a população.

Sociólogos como o norte-americano Barrington Moore Jr. (1903-2005) apontam para similaridades entre o totalitarismo moderno e das sociedades pré-industriais. Práticas totalitárias modernas que se repetem ao longo da História, desde a antiguidade – veja “Totalitarian Elements in Pre-industrial Societies”, In: Political Power and Social Theory, Havard University Press, 1958.

Uma semente desse totalitarismo popular tentou germinar na democracia ateniense sob a forma de anti-intelectualismo –  sentimentos religiosos enraizados eram uma fonte de ressentimento e ódio contra os intelectuais. Mas felizmente para os gregos esse sentimento careceu de tradução política, tornando-se totalmente ineficaz.

Bem diferente disso, há quase 3 mil anos a dinastia Ch’in (221-209 A.C.), de onde vem o nome China, construiu não só um estado poderoso baseado no terror e tirania mas também uma forma de totalitarismo popular baseado nas suspeitas e antagonismo individuais. E criou uma tradução política e um modo de produção baseado no medo e desconfiança.

Dinastia Ch’in: modo de produção baseado no
medo e antagonismos

           Por exemplo, diz-se que um tal de Chefe Shang organizou famílias de agricultores em lotes vizinhos laterais para permitir controle e vigilância mútuos. O Estado centralizado estimulava que cada um aplicasse castigos uns aos outros, além de denunciar os supostos crimes dos vizinhos. Com isso, os dirigentes responsáveis pelo recolhimento de produtos e tributos tiravam proveito dos antagonismos e desconfianças entre os vizinhos.

A estratégia diversionista do dedo-durismo

Perfeita tática diversionista: o Estado totalitário e os pesados tributos eram esquecidos pelas intrigas, ressentimentos e vinganças estimuladas por uma espécie de dedo-durismo oficial generalizado.

Séculos depois, Maquiavel descreveria essa estratégia do Chefe Shang como “dividir para reinar”- provocar a divisão entre seus potenciais opositores para estabelecer um poder baseado no diversionismo.

Pois em plena chamada “crise hídrica” (expressão marota que dá uma conotação natural a um efeito da incompetência gerencial da Sabesp), eis que a grande mídia, a pretexto de estimular “o exercício da cidadania”, coloca em ação a milenar estratégia do Chefe Shang: incentivar a delação entre vizinhos para que qualquer um tenha orgulho de cumprir o dever em denunciar os “gastões” de água. 

Maquiavel: “dividir para reinar”

Telejornais apresentam vídeos feitos com telefones celulares dos telespectadores mostrando vizinhos lavando calçadas, carros ou simplesmente regando o jardim.

Com o requinte retórico típico das matérias explosivas sobre denúncias da Operação Lava Jato, delatores são colocados em contra-luz com a voz alterada para nãos serem identificados enquanto relatam em detalhes os delitos dos vizinhos gastões.

Enquanto isso, o Portal Terra incentiva internautas a enviarem fotos com casos de desperdício de água por meio da página chamada “VC Repórter”.

O gênio do Chefe Shang

Eufórica com esse auxílio luxuoso de última hora da grande mídia, dentro da sua costumeira tática de fugir dos temas desconfortáveis desviando a atenção para questões periféricas, a Sabesp acabou criando no ano passado um registro específico de denúncias desse tipo. A companhia declarou que o número de denúncias tende a aumentar, podendo ultrapassar a marca de 3 mil por mês.

Para o sociólogo Barrington Moore Jr em seu clássico estudo, esse estímulo ao dedo-durismo é um elemento recorrente nos regimes totalitários. Se lá na época da dinastia Ch’in aproveitava-se da dissolução das formas comunitárias primitivas agrícolas pela introdução de formas de propriedade individual da terra (beneficiando-se dos frutos dos antagonismos entre vizinhos), aqui no Estado de São Paulo do século XXI a grande mídia tem uma atmosfera fértil para estimular a tática do Chefe Shang – individualismo, competitividade, medo e desconfiança nas grandes metrópoles.

Também, da mesma forma que lá há quase 3 mil anos a tática do Chefe Shang desviava a atenção das pessoas da realidade de que viviam sob um regime que era sinônimo de terror e tirania, da mesma forma na atualidade a mesma tática desvia a raiva e frustração pelas torneiras vazias para os vizinhos, deixando de fora a incômoda verdade para a grande mídia: a “crise hídrica” é o resultado menos das mazelas climáticas e muito mais na obsessão pelos dividendos dos acionistas de uma companhia que esqueceu da sua função elementar – captar e distribuir água.

Regimes totalitários e demagogos tem no imaginário do dedo-durismo um campo fértil, pois está muito próximo do “fazer-justiça-com-as-próprias-mãos”.

Os “fiscais do Sarney”

Os leitores mais velhos certamente se lembrarão da breve onda dos “fiscais do Sarney”. Era 1986 e o então presidente José Sarney lançou o Plano Cruzado para combater a inflação com congelamento de preços, salários e reforma monetária (o cruzeiro fora substituído pelo cruzado). Com a dificuldade em fiscalizar a obediência ao congelamento, Sarney convocou a população para denunciar comerciantes e empresários que remarcassem preços.

 
Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

9 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Geraldo – o gastador

    Pois eu quero denunciar para a SABESP que o meu vizinho, aqui no Morumbi, é o maior gastão de água de toda a cidade de SP. Ele consome milhares de litros de água por mês e mora numa enorme mansão, chamada por todos de Palácio. Ele é o verdadeiro causador de toda a falta de água na cidade. O nome dele é Geraldo. 

  2. ótimo post.
    o proto-fascismo

    ótimo post.

    o proto-fascismo aludido já existe em termos vocabulares.

    só falta as tais vias de fato.

    tipo aquele troll que emite um julgamento hostil, fala de morte,

    de algo amargo….e no final…põe reticencias e…inacreditável…rs…

    capaz de falar mal da mãe e..no final…rs…

     

  3. Nenhuma palavra sobre a mãe

    Nenhuma palavra sobre a mãe Russia ou sobre regimes comunistas, onde o dedo – durismo é a essência desses regimes. 

     

    1. Pois é…embora soe meio

      Pois é…embora soe meio esquisito o “mãe”, se o tal senhor Stang é de 3 mil anos passados, o cara é um esquecido mesmo. Nem lembrou do macartismo. 

  4. Eu tb acho loucura essa
    Eu tb acho loucura essa loucura promovida pelo estado, mas pega mal pra caramba não citar o que acontecia nos países comunistas. Só pra explicar, eu sou esquerda até a alma porém isso beira a hipocrisia.

    1. Pq o autor quis tratar da nossa realidade

      Pq o autor quis tratar da nossa realidade e prá isso se  baseou nesse exemplo de 3 mil anos atrás como a dizer que de lá prá cá nada mudou

    2. Eu tb acho loucura essa

      o cartel midiatico “mora “em Sao Paulo,seu galinheiro exclusivo de onde imagina comandar o Brasil. SP produz quercias,pitas malufes e o PSDB com seu choque de gestao:Matar o doente para economizar hospital. E pailistano louco com comparaçoes para jsutificar SP. Os dalits tinham que andar com sino ou chocalho para avisar que estavam se aproximando e assim as pessoas de outras castas sabiam que tinha que evita-las. Os leprosos brasileiros tambem tinham sinos para avisar. E a Grande Barbacena de Minas Geraia tinha o “trem de doido” ,locomotivas puxando vagoes diureto para o patio do hospicio da cidade onde praticavamos o nosso holocausto.Em 2015 ,essas coisas sumiram,menos o pSDB em SP e sua competencia absolutamente incompetente e paulistano achando ruim as conparaçoes. Não estamos falando de corrupçao/roubo porque a midia destroi qualquer escandalo quando o PSDB vira figurante ou ator principal.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador