Para o bem geral, política e religião não se misturam

Por Marcio Valley

Do seu blog

O ser humano é naturalmente gregário e, mesmo antes do surgimento da fala, havia se habituado a viver em sociedade. Australopitecos viviam em bandos estratificados por uma tênue organização do tecido social, que possuía um chefe, assim como hoje é observado em grandes primatas, como os chimpanzés, em cujos bandos se verifica que o líder, o macho alfa (chefe), é apoiado por um segmento de outros machos do bando (soldados), o que o auxilia a impôr sua liderança aos demais membros (cidadãos), que são os que respondem pela criação dos filhotes, catação e extrativismo. Dentre os chimpanzés, quem aspira a ser líder do bando não necessariamente precisa ser o mais forte e nem obter a liderança através de vitória em enfrentamentos físicos com o antigo líder. No mais das vezes, o chimpanzé macho que almeja a liderança busca a simpatia dos componentes do grupo que dão sustentação ao macho alfa. Através de afagos e agrados diversos, conquista a confiança desse segmento e, ancorado nessa força, avoca para si a liderança, expulsando o antigo chefe.

Extraordinariamente, os chimpanzés, com esse comportamento, exercitam um rudimento de política, o que demonstra que toda sociedade, ainda que primitiva, precisa ser organizada politicamente de alguma forma. Isso se explica pela necessidade imposta à vida em grupo de tomada de decisões que sejam respeitadas pela coletividade, o que implica limitação da liberdade individual. Se cada um resolver fazer o que quiser, quando quiser, sem planejamento, dificilmente o grupo conseguiria o alimento e a segurança de que necessitam.

Política é justamente a ferramenta através da qual o grupo procura a melhor forma de organizar-se. O ideal da política mais elevada é a conquista da justiça social, com liberdade e igualdade para os indivíduos que integram a sociedade.

Aristóteles enfatizava que o ser humano é um animal político, o que é verdadeiro, dado que dele é exigido que negocie as condições em que exercitará a vida em sociedade, ou seja, sua cidadania.

Ao lado disso, porém, ele é também um animal místico. O misticismo é uma outra face do poder que, assim como a política mundana, igualmente impõe regras de conduta limitadoras da liberdade individual. Desde tempos remotos, o humano, ignorante de quase tudo, atribuiu aos deuses as forças que vislumbrava na natureza. O sol, a lua, a estrelas, os mares, as tempestades, os raios, eram eles próprios, embora fenômenos naturais, considerados deuses e, por isso, temidos, pois podiam interferir na vida e na sobrevivência da pessoa humana. Temerosos, a humanidade passou a bajular o divino por meio de sacrifícios e oferendas como meio de pacificar os deuses, amansá-los e fazê-los simpáticos aos interesses terrenos. Até os dias de hoje persiste o medo atávico do sagrado no seio da civilização.

Não por acaso, naquelas sociedades primitivas o líder religioso, o xamã, concentrava na sua própria pessoa os poderes advindos das palavras sacras e seculares. Tanto era a referência dos deuses, como da sociedade. E não podia ser de outro modo, pois, se aquela pessoa representava o elo entre o céu e a terra, se a ele era possibilitado pelos deuses compreender as intenções do poder divino, como poderiam os demais membros do grupo negar-lhe a sabedoria sobre os rumos mais adequados a serem perseguidos pela comunidade?

Essa ascendência sacerdotal sobre o grupo social persistiu longamente pelo tempo, atravessando milênios. Os faraós diziam-se, não somente agraciados com o reinado, mas que eles próprios eram deuses egípcios. Todos os reis, de alguma forma, atribuíam a posse da coroa a mandamentos sobrenaturais, a desígnios de Deus. Eram reis por vontade divina.

O papa da religião católica nada mais representa do que o rei dos católicos, com direito a castelo (o Vaticano), coroação (assunção papal), nobreza (cardeais e bispos), poder absoluto de legislar e interpretar a legislação (o direito canônico), e vassalos (os fiéis).

Até o final da Idade Média, a interferência da religião nas coisas do Estado era total. Na maioria dos países muçulmanos, essa interferência ainda ocorre nos dias de hoje, consubstanciando-se em teocracias autoritárias, apesar de toda a propalada modernidade cultural e avanços científico e tecnológico.

Com a evolução da civilização, contudo, houve um natural distanciamento daquele medo original das coisas da natureza. A ciência jogou luz sobre a escuridão da ignorância e os seres humanos perceberam que os astros e os demais fenômenos da natureza são explicáveis racionalmente, não se tratando cada um deles de um deus ou ainda de uma manifestação raivosa do divino. Com isso, o poder que os sacerdotes possuíam sobre as pessoas, fundado no medo do além, foi aos poucos sendo mitigado pelo uso da razão, que fez ampliar a experiência crítica de cada pessoa. Tais fatores possibilitaram a implementação do laicismo.

Nos países do ocidente, a partir da constatação dos excessos praticados pela intromissão indevida das diversas religiões nas questões de Estado, que conduziu a um acirramento político-religioso e à insegurança social (representada, por exemplo, pela inquisição), a sociedade humana civilizada entendeu que era fundamental a adoção do laicismo do Estado, que é uma doutrina filosófica que sustenta ser salutar a separação entre Estado e religião, de modo que os líderes religiosos devem ser afastados da política secular e, em contrapartida, receberem a neutralidade do Estado no que concerne à liberdade da prática religiosa por seus cidadãos.

O Estado laico pretende conferir valor a experiências sociais que, até então, pertenciam quase exclusivamente ao mundo das idéias, como liberdade de consciência e de opinião, igualdade entre cidadãos e democracia. Tudo isso era pretensão da filosofia laica que dificilmente seriam alcançadas em sociedades submetidas ao obscurantismo religioso.

Embora o temor reverencial nutrido pelas pessoas em relação aos deuses tenha sido atenuado à medida do implemento da razão, ele ainda existe.

Justamente em função desse medo latente, o discurso religioso na política deve ser evitado.

O discurso político proferido por um sacerdote é desigual em relação ao profano porque possui força sobrenatural, transcendental. Um sacerdote ou uma religião desonesta não hesitará em atribuir a Deus os seus próprios interesses escusos, como, aliás, não faltam exemplos, principalmente no campo da arrecadação de dinheiro.

Claro que o sacerdote é também um cidadão e, como tal, possui direito à liberdade de opinião e de expressão. Porém, isso somente é válido fora do púlpito, em sua condição de cidadão, jamais como sacerdote. Do púlpito sagrado, compete ao sacerdote respeitar os limites do laicismo, não lhe sendo permitido recomendar ao crente que adote essa ou aquela corrente político-partidária, esse ou aquele candidato.

Ao arrogar-se o direito de recomendar uma candidatura, por exemplo, cujo âmbito é político e não sagrado, o sacerdote está entrando no perigoso terreno de conceder igual iniciativa ao político de adentrar a seara religiosa, como por exemplo recomendando aos seus partidários que se afaste de determinada religião por ser perniciosa. Indo um pouco mais longe, pode estar autorizando que o político proponha uma legislação específica contrária a essa religião, sob o fundamento de interesse público, por exemplo.

Hoje nossa Constituição desautoriza qualquer espécie de restrição à liberdade religiosa, basta, porém, uma emenda constitucional para modificação desse status.

Pau que dá em Chico, dá em Francisco, já sabiamente afirma o velho ditado.

Outrora, Estado e religião se confrontaram violentamente, sempre com prejuízo para a sociedade.

Sacerdote se imiscuir na política é algo anacrônico, démodé, ultrapassado desde a Idade Média pelo laicismo. Melhor para todos que se mude o rumo dessa prosa ou proselitismo e manter o combinado no sentido de que sacerdote fala de Deus e político fala do Estado, um não fala do outro e ficam todos em paz.

no blog: http://marciovalley.blogspot.com.br/2010/10/para-o-bem-geral-politica-e-religiao.html

Redação

8 Comentários

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  1. Daí se conclui que toda e

    Daí se conclui que toda e qualquer organização social que permite que os “sacerdotes” se imiscuam na política é atrasada socialmente; ou, mais duramente, ignorante. Algum exemplo à vista?

  2. Ameaça a vista

    “Hoje a nossa constituição desautoriza qualquer espécie de restrição à liberdade religiosa, basta porém uma emenda constitucional para modificação desse status”.

    Como mais de 85% da população brasileira tem algum credo ou religião, essa ameaça é uma bazófia. 

  3. Ameaça a vista

    “Hoje a nossa constituição desautoriza qualquer espécie de restrição à liberdade religiosa, basta porém uma emenda constitucional para modificação desse status”.

    Como mais de 85% da população brasileira tem algum credo ou religião, essa ameaça é uma bazófia. 

    1. Não foi uma ameaça, pois não

      Não foi uma ameaça, pois não tenho mandato parlamentar. No contexto, do qual você pinçou a frase, significa que a intromissão do religioso na política pode acarretar, no futuro, uma intromissão do político na religião. Hoje um Malafaia ataca o PT e não acontece nada porque atende aos interesses políticos do momento. Supondo, porém, que surjam vários “malafaias” disparando contra diversos partidos importantes, não vejo como “bazófia” uma possibilidade de contra-ataque. Primeiro, porque o fato da maioria possuir religião não significa que todos possuam a mesma fé e que todos se posicionariam contra uma lei que atingisse uma religião que não é a própria. A História comprova que as pessoas não possuem disposição inata para defender o que não é próprio. O exemplo mais dramático é a Alemanha. Quase ninguém defendeu o vizinho judeu. E, vamos combinar, 85% da população diz que tem religião, o que não quer dizer que sigam de fato a religião. Poucos conhecidos meus que se dizem católicos comparecem à Igreja ou possuem disposição para defendê-la com veemência em caso de desvios éticos. Lembre-se: até pouco tempo atrás a heresia era crime e podia acarretar até a morte. Segundo, porque a religião vem tomando o poder de forma insidiosa no mundo inteiro, ainda que através de pessoas formalmente não sacerdotes, o que é entendido como um perigo para o estado laico mesmo por religiosos. Não acredito que 85% da população brasileira queira um Malafaia esbravejando tolices políticas na tevê.

  4. Para eliminar a religião da vida pública

    Os senhores deputados e/ou senadores deveriam criar uma Lei que proibisse pessoas ligadas às religiões (todas e qualquer uma) de se candidatarem a cargos eletivos.  Já que o país é laico, conforme reza nossa Constituição, então, porque permitir que as religiões tenham acento onde se fazem as leis laicas?  Nosso Congresso possui uma grande bancada ligada às religiões e temo que, ao atingirem a maioria, essa bancada irá implantar uma teocracia em nosso país.  Outra coisa que me deixa intrigado: porque isenção tributária para as religiões?  Não me refiro às doações, e sim aos vários negócios explorados pelas religiões.  Porque eu pago imposto por explorar um negócio e as igrejas, que possuem e exploram o mesmo tipo de negócio que eu, não pagam?  Gostaria de receber uma resposta séria.  

  5. Vou construir  a grosso modo

    Vou construir  a grosso modo uma espécie de diálogo com o Márcio Valley para ver se ele está falando certo o que disse:

    “Extraordinariamente, os chimpanzés, com esse comportamento, exercitam um rudimento de política, o que demonstra que toda sociedade, ainda que primitiva, precisa ser organizada politicamente de alguma forma. Isso se explica pela necessidade imposta à vida em grupo de tomada de decisões que sejam respeitadas pela coletividade, o que implica limitação da liberdade individual. Se cada um resolver fazer o que quiser, quando quiser, sem planejamento, dificilmente o grupo conseguiria o alimento e a segurança de que necessitam.”

    Mais tarde, vieram os sábios economistas e fizeram o “planejamento da troca” do alimento do macaco/homem pelo papel abstrato (dinheiro) e lhe disse: esse papel consegue levá-los aos fenômenos externos (EUA e bancos de investimentos), eles representam a liberdade individual para você conseguir os alimentos e a segurança que necessitam.

    “O misticismo é uma outra face do poder que, assim como a política mundana, igualmente impõe regras de conduta limitadoras da liberdade individual.”

    Os economistas por trás desse estelionato de levar os alimentos do macaco/homem em troca de inversão da natureza deles para a política mundana do deus mercado chamaram de ciência da economia. 

    “Com a evolução da civilização, contudo, houve um natural distanciamento daquele medo original das coisas da natureza.”

    É verdade! Ninguém mais pensa que a liberdade  do homem com a natureza em si pode ser explicado pelas necessidades impostas à vida em grupo. Basta dizer que o Brasil deve quase três trilhôes por substituir a natureza externa da sociedade primitiva pela política econômica.

    “A ciência jogou luz sobre a escuridão da ignorância e os seres humanos perceberam que os astros e os demais fenômenos da natureza são explicáveis racionalmente, não se tratando cada um deles de um deus ou ainda de uma manifestação raivosa do divino.”

    Que luz é essa sobre a escuridão da ignorância (a limitação da liberdade individual?), explique racionalmente a forma do dinheiro, para sairmos do nível do macaco e o homem possa solucionar o natural distanciamento daquele medo original das coisas da natureza.

    “O Estado laico pretende conferir valor a experiências sociais que, até então, pertenciam quase exclusivamente ao mundo das idéias, como liberdade de consciência e de opinião, igualdade entre cidadãos e democracia.”

    Vamos então lutar para que o Estado laico possa conferir valor (fenômenos da natureza) diretamente com a sociedade; ja que o dinheiro representa os bancos e não a civilização de igualdade entre cidadãos e democracia (política econômica dos alimentos e segurança).

    Agora vem o senhor, macaco, com essa de respeitar os direitos do laicismo.

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