A ditadura cronológica, por Daniel Aarão Reis

Da Folha

A ditadura cronológica
 
DANIEL AARÃO REIS
 
A escolha de 1985 como o marco final é funcional para todos os que desejam ocultar, silenciar ou suprimir as conexões civis da ditadura
 
O senso comum pode imaginar que marcos cronológicos são naturais. Contudo, eles são inventados pelos que pensam a história, segundo interesses determinados, embora nem sempre explicitados.
 
O caso da mais recente ditadura brasileira é ilustrativo.
 
Os soldados do general Mourão começaram a mover-se na noite de 30 de março de 1964. No dia seguinte, 31, o golpe estava vitorioso. No entanto, os vencidos, exercitando a ironia, não hesitaram em datar a vitória do golpe em 1° de abril, dia da mentira. A versão pegou e está em quase todos os livros didáticos.
 
Controvérsia mais complexa trava-se a respeito de quando acabou a ditadura. A versão dominante, uma espécie de “pensamento único”, assinala a posse de José Sarney em março de 1985 como o “fim da ditadura”. Caracterizada como “militar”, a ditadura teria terminado seus dias com a posse de um “civil” na Presidência da República.

No entanto, é razoável afirmar que a ditadura acabou quando foram revogados os atos institucionais, no início de 1979. Desapareceram, então, os instrumentos de exceção que configuram as ditaduras, regimes que se baseiam no fato de que os governos fazem e desfazem leis a seu bel prazer, quando e como querem, apenas exercendo a força.
 
Ora, depois de 1979, deixou de haver um estado de exceção no Brasil. Subsistiu um Estado de Direito autoritário, sem dúvida, marcado pelo chamado “entulho autoritário”, que só seria revogado pela Constituição de 1988. Entre 1979 e 1988, o país conheceu um período de transição –ainda não havia um Estado de Direito democrático, mas já não existia ditadura.
 
Mas por que, então, quase todo o mundo fala em 1985 como o fim da ditadura? A escolha de 1985 é funcional para todos os que desejam ocultar, silenciar ou suprimir as conexões civis da ditadura.
 
Elas são muito visíveis desde 1964: basta lembrar as Marchas da Família com Deus pela Liberdade e o apoio ostensivo de veneráveis instituições como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) à instauração da ditadura.
 
Sem contar a participação ativa de quase todos os grandes jornais e de lideranças políticas, empresariais e eclesiásticas. Ao longo do tempo, ainda que sofrendo mutações, e consideráveis, os apoios civis à ditadura permaneceram consistentes, desfazendo-se só pouco a pouco.
 
Por outro lado, o marco de 1985 também agrada a setores de esquerda que, desde 1964, procuraram caracterizar a ditadura como “militar”, num recurso legítimo de luta política, onde se procurava isolar os milicos no poder. Tratava-se de enfraquecer os adversários, e não propriamente de compreender o processo histórico.
 
Formou-se, assim, uma ampla e heterogênea “frente”, política e acadêmica, configurando o fim da ditadura em 1985, mesmo que o marco seja de uma inconsistência que salta aos olhos, pois José Sarney, como se sabe, e ele também, foi um líder da ditadura durante o tempo em que ela durou, até 1979.
 
Devagarinho, camaleonicamente, ele, acompanhado por muitos outros, migrou para as oposições antiditatoriais, depois que a ditadura tinha acabado. A posse de Sarney foi apenas mais uma mudança molecular, entre outras, que levaram a 1988, quando, aí sim, pode-se afirmar que se encerrou a transição que desembocou na restauração democrática no país.
 
Questionar o consagrado marco de 1985 não é tarefa simples. Envolve não apenas enfrentar uma verdadeira ditadura cronológica, formada por militantes de direita e de esquerda, mas também a força da inércia que se traduz, no pensamento social, pela preguiça intelectual.
 
DANIEL AARÃO REIS, 68, é professor de história na Universidade Federal Fluminense
Redação

12 Comentários

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  1. So podia ser professor de

    So podia ser professor de historia!

    Adorei o item, mas a questao dos marcos cronologicos eh mais filosofica do que historica:  tudo na (uh, dialetica) tem que ter um comeco, meio, e fim.  Essa eh a necessidade dos marcos.  E o que sao os “marcos” entao?

    Ninguem sabe.  Eles variam de sociedade pra sociedade.  Se houvesse formula para “emblematica” alguem ja a estaria usando, porem…  nem a media sabe emblematizar eventos mais -nao eh questao de reportar, eh questao de relatar da maneira correta, e isso ja nao eh feito.

    Se “marcos” e “datas” for ou nao coisa de “militantes” de qualquer lado, eh irrelevante, claro.

     

    (De nota:  eu ja nao estava no Brasil e os marcos mencionados pra mim nao fazem diferenca porque isso eh consensus alheio do qual eu nao fiz parte.)

  2. Cabe lembrar ainda,

    salvo engano, que entre a posse de Sarney e a homologação da constituição de 1988, houve uma reunião no Congresso na qual, numa tarde se revogaram boa parte do chamado “entulho autoritário” ainda persistente na legislação da época, como a eleição indireta para presidente, e outras. 

    Claro, nem tudo foi para o lixo, alguma coisa ainda prevaleceu até a data da constituinte. Aliás, o tal plano Cruzado de 1986 só foi possível justamente por alguns dispositivos autoritários ainda em vigor na época. 

    Outro detalhe, uma filigrana jurídica: a constituição autoritária vigente em 1985 permitiu a eleição de Tancredo e do Sarney. Ou seja, dependendo de qual ponto de vista, mesmo sendo autoritária, a consituição da época permitiu esta transição. Ditadores normalmente não permitem isso.

    Antes ainda, se não me engano, na “eleição” indireta do Costa e Silva em 1966, um membro do congresso filiado ao MDB (antecessor do atual PMDB e “pai” das muitas “crias”, como o PSDB e outros partidos) votou no Costa e Silva. O MDB entrou na justiça para expulsar este congressista e assim ele perder o mandato. Os juízes que apreciaram o processo, talvez pressionados pelos militares indeferiram a cassação, alegando algo como “votação nominal é da consciência do votante, e não depende da vontade do partido”. 

    Esta “jurisprudência” um tanto viciada, para não dizer bocó, foi aproveitada pelo Tancredo, para costurar a sua aliança para se tornar vitorioso no Colégio Eleitoral de 1985.

    Em suma, o regime militar tentou de alguma maneira dar um verniz sério à ditadura. E esse mesmo verniz serviu para a sua derrocada. 

    Se os congressistas, numa eleição indireta após 1966 já tivessem sido liderados por alguém esperto como o Tancredo em 1985, essa ditadura teria acabado bem antes, envenenada pela própria saliva, quer dizer, pela sua própria legislação.

    Pena que não havia tanta coragem disponível naquela época.

  3. Esse texto  tortuoso com

    Esse texto  tortuoso com argumentos que beiram a baba de quiabo de camelô da Uruguaiana,parece extraido dos rascunhos indecisos de Elio Gaspari.

     

  4. A minha dúvida é se é

    A minha dúvida é se é possível dizer que entre 79 e 85 vivíamos realmente num “estado de direito”. Mesmo que os institutos de exceção tenham sido revogados, o grito e a força ainda eram amplamente reguladores da vida social. Sem falar dos atentados impunes, torturas, etc.

    Sim, entendo o argumento de que não foi um regime somente militar; o papel dos civis nunca me enganou. Afinal, o golpe foi dado “a pedido” de setores civis e por olho grande de uma elite militar. Por isso mesmo, entes de mudar data é melhor mudar de nome. Em vez de dizer que a ditadura militar terminou em 79, diga-se que a ditadura civil-militar terminou em 85… Ou em 88!

  5. Pelos comentários de Ivan e

    Pelos comentários de Ivan e Durvaldisko dá para imaginar que Daniel Aarão Reis deveria ter assinado “ex-combatente contra a ditadura”. Teria lhes poupado tempo…

    1. What?!
      Eu gostei do item e o

      What?!

      Eu gostei do item e o disse desde o primeiro comentario.  Minha “critica” era estritamente uma comparacao entre analise historica versus analise narrativa e eu disse isso tambem, e o “apropriativo” nao quer dizer “tomar possessao” no sentido que voce esta pensando mas no sentido tecnico (teoria das narrativas) de contar a historia de acordo com os dados que voce tiver aas maos.

      Ache me uma goticula de depreciacao no que eu disse.

  6. Data?

    Num filme de Costa-Gravas, Queimada, eu creio, há uma cena imperdível: um jornalista está fora de um prédio onde ocorrerá uma reunião das forças atuantes do país. Ele vai descrevendo quem chega, fulano, empresário, dono de uma fortuna de tantos milhões, beltrano, ministro, banqueiro, herdeiro de um império X, Sicrano, bispo, da família de proprietários de imensa monocultura de bananas e, finalmente, o general Y, que não é rico, não é herdeiro, não possui terras, mas é aquele que garante o poder dos anteriores.

    Sim, poderíamos falar de uma ditadura civil/militar. Poderíamos discutir que, enquanto os militares sujavam as mãos de sangue e cultivavam o ódio, os civis contavam os dólares e atiravam as migalhas para eles.

    Toda esta discussão pode ter um valor eurístico, de modo que possamos colocar à mesa estas questões. Mas, se tivermos como fulcro delimitar datas… aí será fútil.

    Quer algo incontroverso como a data de aniversário e alguém? Legalistas cartoriais defenderão que o registro civil do nascimento deve ser considerado. Pois bem, haverá puristas que recordarão o fato de que já era vivo o indivíduo no momento da concepção, ainda que incapaz de vida independente. Os obstetras fixam a data, para medir a idade gestacional, como a data da última menstruação (DUM) da mãe. Trata-se, no entanto, de uma estimativa, ja que não é possível determinar o momento da concepção. Correntes fundamentalistas poderiam querer comemorar o aniversário de alguém no horário exato do nascimento. Outros quereriam determinar em qual momento o indivíduo é capaz de vida independente, ou seja, se nascer, viverá. Bem, também tratar-se-á de estimativa estatística, pois conceptos de 500g podem sobreviver. Até com menor peso ainda! Correntes espiritualistas discutiriam se a alma, para eles a real procedência da vida, foi criada no momento da concepção ou tinha existência anterior… E aí vai.

    Fugir do jocoso Primeiro de Abril, mudar o fim para 1979, incluir os civis na ditadura e, portanto, mudar a data para 1988, ou mesmo 1985… Não sei se é diversionismo: um historiador deveria preocupar-se com a documentação e entendimento do processo histórico. Data é o menor problema.

    1. “Toda esta discussão pode ter

      “Toda esta discussão pode ter um valor eurístico, de modo que possamos colocar à mesa estas questões. Mas, se tivermos como fulcro delimitar datas… aí será fútil”:

      Sim, mas narrativa eh apropriacao, essa eh a “importancia” que os marcos tem pra sociedade.  O item eh tambem uma apropriacao da historia.  Nao me incomoda, claro, muito pelo contrario, gostei do artigo.  Mas delimitar marcos narrativos ta alem do meu interesse -foi por isso que eu nao estranhei que ele eh professor de historia:  surpresa, ne?

      “Não sei se é diversionismo: um historiador deveria preocupar-se com a documentação e entendimento do processo histórico”:

      Como dito…  eh a profissao dele, e a narrativa dele eh apropriativa.  Eu faco um esforco enorme pra nao apropriar de narrativa fixa ao ponto de engessar la -tanto que aas vezes eu conto uma historia de 10 maneiras diferentes.  Mas ai ja estamos no campo filosofico da linguistica narrativa, eh bem outra coisa.

      1. Revanchismo

        Hum. A narrativa que cada um faz é uma interpretação filtrada pela sua história pessoal. Ela conterá, inevitavelmente, a carga ideológica/ética/moral do continente individual. Compreensível, portanto, que seja possível recontar diversas vezes um fato, cada uma delas com uma nuance ou um viéz diferente. Mas aí, para sermos intelectualmente honestos, teríamos que demonstrar com clareza que estamos discutindo não nossa visão pessoal do fato ou nosso entendimento, mas suas possíveis vertentes e interpretações!
        No entanto, é através do estudo do processo que se desvenda as relações que determinaram os fatos ou seu desenrolar. Exclui-se, por óbvio, a determinação interna de cada um, impossível de ser desvendada.
        Entendo que DAReis tentou “puxar um fio” do novelo, fio este que inculpa os civis no processo de instalação e desenvolvimento da ditadura. Creio ainda que, da narrativa de nosso amigo, o que me incomodou foi afirmar que a esquerda, fixando a data em 1985,” procurava isolar os milicos no poder”. Não esqueço Consta-Gavras: quem impunhava as armas para defender o interesse daqueles civis? Quem se manteve com a caneta na mão?
        Se, por um lado, os antigos aliados da ditadura ainda estão por aí, defendendo seus interesses, por outro, movem-se por regras diferentes daquelas de então! Raros são os que, hoje, defendem abertamente a desinstitucionalização do país (Bolsonaro, p.e.). Sarney retornou pelo voto. Getúlio também o fez!
        Se o intuito, porém, é descobrir quem cuidava da conta bancária, podemos prosseguir. Este sempre foi o receio dos golpistas: chamam a isto de revanchismo.
        Se é só discutir data, não! Tô fora.

        Abs generalizados!
         

        1. “Compreensível, portanto, que

          “Compreensível, portanto, que seja possível recontar diversas vezes um fato, cada uma delas com uma nuance ou um viéz diferente. Mas aí, para sermos intelectualmente honestos, teríamos que demonstrar com clareza que estamos discutindo não nossa visão pessoal do fato ou nosso entendimento, mas suas possíveis vertentes e interpretações”:

          Nao funciona bem na pratica:  enche o texto de “e entao eu”‘s e confunde mais do que esclarece.  Analise historica nao teria essa obrigacao comigo -razao que eu estranhei tanto esse comentarista voador nao identificado de abaixo se referir aa biografia do Suspeito Autor -como se fosse angulo que eu fosse considerar fora de uma analise psicologica.  (Mas autor nao fez uma analise historica per se, mas estava comparando os pontos criticos das narrativas historicas, os “marcos”.)

          Quanto a uma historia contada 10 vezes, e cada vez de uma maneira diferente:  redundancia eh inaceitavel.  Repeticao de uma historia eh aceitavel, redundancia narrativa nao eh. Acontece que uma narrativa tem requerimentos minimos de objetividade desde que se adeque aa audiencia.  Se eu tou te falando uma coisa, eu posso me adequar ao seu requerimento -e esse seria o meu requerimento minimo de objetividade dentro da narrativa.  Ja se o publico eh de duas pessoas ou de 20 pessoas ou de 20 milhoes, ai cada caso eh um caso, mas sempre eh a mesma coisa:  pode se repetir aa vontade, mas redundancia dentro de uma narrativa eh inaceitavel.

          Anyways, o item me eh interessante porque os marcos que ele menciona nao me dizem nada e nao vivi nenhum deles -tou fora do BR ha 34 anos.  Entao eu so o item analisei estruturalmente, do leque de opcoes que eu tinha so essa me animou!

          Sai do topico porque escorreguei numa casca de banana, mas o ponto eh que narrativas diferentes de uma mesma coisa sao TODAS verdadeiras porque narrativas contam se a si mesmas para seu publico.  (nao vai dar pra desenvolver mais a fundo imediatamente, mas ainda vou voltar ao assunto.  Com uma outra narrativa(:-)

  7. Sendo assim, melhor seria

    Sendo assim, melhor seria datar o fim em 2013 ou 2014, quando a globo reconheceu, enfim, que se tratou de um golpe e não de uma revolução. E estamos falado.

  8. E onde entra o atentado do

    E onde entra o atentado do Rio Centro em 1981 e a carta bomba na OAB em 1980?

    A distensão política já estava instalada e mesmo assim, os milicos e seus asseclas ainda tacavam terror, acho que 1985 não foi um chute ou data escolhida aleatoriamente. Penso que tenha sido o momento em que houve realmente a ruptura, ainda que em eleições indiretas.

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