A imprensa a serviço da espionagem privada, por J. Carlos de Assis

Uma das consequências do fim da União Soviética foi o espalhamento pelo mundo de milhares de antigos espiões da extinta KGB ou a serviço dela, todos agora em busca de emprego alternativo para sobrevivência. Estima-se que muitos foram prestar serviço no sistema financeiro, tendo em vista sua habilidade em línguas e transações internacionais. Já uma parte importante foi, por vários indícios, recrutada pela imprensa mundial de direita.

A maior evidência da articulação pós-guerra fria entre mídia e espionagem aconteceu na Inglaterra em 2011. Espiões travestidos de jornalistas grampearam milhares de personalidades para alimentar reportagens do “The News of World”, um dos braços britânicos do multibilionário truste jornalístico comandado pelo senhor da mídia mundial de extrema direita, Rupert Murdoch. Ele se viu forçado, em face da investigação do escândalo pelo Parlamento, a fechar o tabloide.

A imprensa concorrente de Murdoch não fez muito barulho com essa violação repugnante de privacidade que, contraditoriamente, feriu na alma um dos princípios basilares do liberalismo de direita. Se isso tivesse acontecido com um jornal progressista seria caso de uma mobilização moral e política universal contra os responsáveis. Mais do que isso, o caso foi tomado como excesso de alguns jornalistas, e não como prática de espionagem que extrapolou do maior complexo de mídia contemporâneo.

É fato que nem sempre é fácil distinguir jornalismo de espionagem. A espionagem usa frequentemente jornalistas, em geral no interesse de governos, e jornalistas usam fontes espiãs, em geral no interesse da informação. O que é novo é a compra por jornais de certas informações que só podem ser efetivamente colhidas por espiões profissionais, e não por jornalistas. Em outras palavras, o que é novo é um “mercado” de notícias ou intrigas por interesse ideológico da mídia e por interesse financeiro do espião.

Entretanto, há uma maneira sutil de diferenciar jornalismo de espionagem. É o nível do detalhe da suposta informação. Dou um exemplo: numa eleição de Kirchner surgiu a informação de que Chavez havia mandado creio que 700 mil dólares para a campanha. É muito provável que tenha sido verdade. Contudo, como essa informação chegou ao conhecimento da imprensa? O jornal que a deu afirmou que o portador saiu de Caracas num horário preciso, pousou para escala em Brasília em horário determinado, foi para um apartamento com endereço identificado, saiu de volta ao aeroporto numa hora determinada e dali seguiu para Buenos Aires, onde foi recebido por gente de Kirchner em horário certo.

Pergunto: como um jornalista na sua rotina regular pode ter sabido de tudo isso com precisão de minutos? No mínimo, teria que acompanhar o voo do portador, anotando todos os detalhes. Como um jornalista poderia anotar todos os detalhes antes de ter conhecimento do fim da missão? Um espião poderia fazer isso pois acionaria parceiros disponíveis em Brasília e em Buenos Aires, todos trabalhando regularmente para jornais e … para clientes privados. Essa pista para distinguir jornalismo de espionagem acontece porque os jornais usam detalhes como hora e lugar precisos para aumentar a credibilidade da “informação”. Isso é o rabo que revela o cachorro.

No Brasil, onde se usa regularmente a liberdade de imprensa para violar direito de privacidade e intimidade, a relação entre polícia e mídia se estabeleceu recentemente mediante uma vinculação de caráter quase institucional. O procedimento padrão é o seguinte: a Polícia Federal recebe uma denúncia e inicia uma investigação; havendo indício de irregularidades, pede ao Judiciário autorização para grampear os envolvidos; o juiz costuma dar com facilidade porque tem medo de ser, ele próprio, objeto de investigação da Polícia; tendo-se confirmado os indícios, e antes da entrega à Promotoria para instrução do processo, a Polícia escolhe um jornal ou televisão e “vaza” o momento espetacular da prisão provisória, cedendo as gravações. A mídia, “protegida” pela liberdade de imprensa, se encarrega da divulgação escandalosa dos fatos antes da denúncia e do julgamento, mandando às favas o princípio jurídico da presunção de inocência.

A opinião pública não se escandaliza com isso por duas razões. Primeiro, porque acha que se a Polícia Federal disse e a mídia noticiou o sujeito deve ser criminoso mesmo; portanto, às favas com sua privacidade. Segundo, porque acha que nunca vai acontecer com ela mesma.

Entretanto, há uma imensa gama de probabilidades pela qual milhares de nós podem ser expostos a chantagem tendo em vista as ramificações desse procedimento padrão. A primeira delas é que não existe um telefone grampeado; são muitos, ou seja, são todos para os quais o dono liga ou dos quais recebe ligação. Todos são gravados, inocentes e culpados. E todos ficam de posse do grampeador que pode simplesmente vender seu conteúdo para jornais ou para particulares no mercado das chantagens pessoais.

É claro que a Polícia Federal tem encontrado no grampeamento de telefones um meio extremamente eficaz de investigação. Isso deve ser preservado em nome do combate à corrupção em setores antes inatingidos. Mas deve haver regras claras para os juízes autorizarem os grampos. E o tempo do grampeamento não pode ser infinito. No Supremo Tribunal Federal alguns ministros se levantaram contra as práticas de alguns juízes de autorizarem o prolongamento do prazo do grampo sem justificativa, e por simples pedido da Polícia. Até agora, porém, nada foi regulado nessa matéria.

É necessário também proibir a divulgação de gravações na fase de inquérito. Isso deve ser feito na fase seguinte, quando a Promotoria faz a denúncia. E é inaceitável que peças do inquérito, inclusive gravações, sejam dadas em exclusividade, antes da denúncia, a alguns jornais, revistas e tevês selecionados, para serem apresentados por esses meios como furos. Não pode haver interesses privados por trás desses “furos”?

A liberdade de imprensa é um instrumento fundamental da democracia, mas não a liberdade de espionar a vida íntima dos cidadãos honestos. A tolerância com isso vem do medo de ser confundido com corruptos, ou de ser acusado de protegê-los.  Uma maneira de distinguir uma da outra é examinar o nível de detalhamento da notícia: quando está cronometrada ao nível de minutos, cuidado. Há um espião profissional por trás contaminando a notícia com interesses privados. Em outras palavras, estaremos diante de uma situação em que em lugar de a imprensa usar a espionagem privada, a espionagem privada usa a imprensa!

 J. Carlos de Assis – Economista, doutor em Engenharia da Produção pela Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional da UEPB, autor de mais de 20 livros sobre Economia Política brasileira.

Redação

9 Comentários

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  1. O fato hoje é que a imprensa corporativa brasileira,

    na mão de meia duzias de famílias que se acham aristocráticas, se confunde com o submundo, polícias incluídas.

    A maneira como assuntos tais como o “helipóptero” dos Perella ou os “aeroportos” clandestinos de Minas são tratados são uma prova clara do confluente de interesses das famílias donas da tal imprensa com os operadores deste submundo.

  2. E nesse conluio da PF e jornalistas …

    Várias reputações foram assassinadas e, quando inocentadas, não tiveram o mesmo destaque nas primeiras páginas dos jornais, nem mesmo no noticiário da TV. Comportamento deplorável!

  3. O povo não é bobo

    O  povo está cagando para estas invenções da imprensa. Se não fosse isso, o PT não emplacaria e presidentes seguidos e mais um na liderança da corrida eleitoral. Os motivos são dois, 95 dos brasileiros não são leitores de jornais e revistas, e 90% não assiste estes telejornais de direita.

  4. muitos e excelentes dados

    muitos e excelentes dados para definir e comprovar o estilo neocom de jornalismo de veja e assemelhados. – no caso usaram agentes rremanescentes do regime utoritário da abin em consórcio com o meliante carlinhos cachoeira, infames repórteres do famigerado e fossilento semanário.

    1. Foi ABIN não Altamiro

      Foram os desempregados ou tinham jornadas duplas do SNI. No caso de MG, além desses, os da famigerada P2 da PMMG e remanescentes das três forças militares. O padrão é o mesmo: destruir as reputações dos “inimigos” polítiicos utilizando e em conluio com os meios de comunicação de massa e, inclusive, dentro das empresas estatais e particulares, as tais de ASI – Assessorias de Segurança e Informações. 

  5. Mídia com poder de investigar

    Mídia com poder de investigar e opinar, quando nunca teve auotirzação judicial para isso e voto do povo, é a nossa maior excrecência.

  6. Atribuir a prostituição da informação a ex-agentes da KGB..

    Premissa inaceitável. Atribuir a prostituição da informação no Ocidente a ex-agentes da KGB desempregados – como determina o autor do post no primeiro parágrafo do seu escrito – equivale a absolver de práticas costumeiras, os agentes da CIA, NSA, FBI e seus similares nos países europeus submissos aos EUA, nos processos de desestabilização das nações que êles supõem serem suas propriedades. Declaração explícita de preconceito. O êrro grosseiro do Santander ao fazer apologia contra a Presidenta Dilma, é exemplo de tal comportamento, que terá – espero –  a devida contrapartida na indignação de seus correntistas que não são alienados como supõe o banco espanhol, que até agora escusou-se de esclarecer seu papel na derrocada da economia espanhola, com os efeitos conhecidos. O estrago não ocorrerá na fatia de privilegiados que receberam o panfleto do banco, mas entre os 98,2% do resto da sua clientela, a chamada patuléia. O fantasioso surto paranóico da Empiricus não passa de uma fraude oportunista contra incautos, algo muito parecido com o que é conhecido como pirâmide, em que um bando de supostos expertos, entregam seus haveres a oportunistas de ocasião. O uso reiterado da profecia do caos econômico em nosso país com quase pleno emprego, inflação de um dígito, que nos meus sessenta anos só conheci na década passada durante o governo Lula, a virulência ou a omissão do jornalismo nativo – cada caso é um caso – que acoberta interesses inconfessáveis, são indícios mais do que suficientes para entendermos que no pleito de Outubro, estarão em jôgo muito mais do que a continuidade dos governos do PT.

    Não é exagêro dizer que é a continuidade do Brasil enquanto nosso sonho – quisera dizer nossa obra – de país livre e soberano que desde 2002 luta para ser o que quer ser, está sendo combatido com a virulência possível e desleal por aqueles que desejam para nós, a volta aos tempos da submissão irrestrita, para além de irresponsável, dos anos de FHC presidente. Para ficarmos nos fatos recentes, não é exagêro dizer que a derrubada criminosa do vôo MH17 na Ucrânia, foi obra de quem veta – ainda que sem mandato para tanto e ao ao arrepio das instituições, a ONU que regula ou deveria regular as relações entre as nações – as mudanças na geopolítica mundial que ocorrem sem o seu protagonismo e consentimento. Idem para o apoio incondicional ao estado judeu que pratica genocídio nos campos de concentração nos quais encerraram os palestinos. Qualquer semelhança com os campos de concentração nazistas não é tão somente mera coincidência, como a propaganda diuturna nos quer fazer crer. Duro dizer, mas os sionistas aprenderam alguma coisa com os nazistas. Talvez tenham até mesmo, aperfeiçoado as técnicas da barbárie.

    Fêz bem a diplomacia brasileira, ao reagir nos têrmos em que o fêz. É precisamente isto que nos diferencia e afere a nós, credibilidade que não a têm os nossos opressores. Pois nós a temos, ainda que não esteja revelada pelo bloqueio da informação veiculada pela mídia engajada no processo de nossa alienação, que tenta validar ainda hoje, os valores indefensáveis dos defensores do neoliberalismo e do fim da História.

    Ignoremos êles.

     

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