Ainda achamos que a violência resolverá os problemas, diz historiadora

Margaret MacMillan, historiadora da Universidade de Oxford e autora do livro 'The War that Ended Peace' (A Guerra que Acabou com a Paz)

Margaret MacMillan, historiadora da Universidade de Oxford e autora do livro ‘The War that Ended Peace’ (A Guerra que Acabou com a Paz) 

Enviado por Paulo F.

Do Diário de Notícias de Lisboa

“Ainda achamos que usar a violência irá resultar”

por Patrícia Viegas

Conceituada historiadora da universidade de Oxford, autora do premiado livro ‘The War that Ended Peace’ (A Guerra que Acabou com a Paz), Margaret MacMillan falou ao DN sobre o estado do mundo 100 anos após a I Guerra Mundial. O tiro de partida foi dado, em Sarajevo, por Gravilo Princip, que a 28 de junho de 1914 matou o arquiduque Francisco Fernando. Um mês depois, a 28 de julho, deu-se a invasão austro-húngara da Sérvia.

A I Guerra Mundial é por vezes referida como uma guerra para acabar com todas as guerras. Escreveu um livro intitulado ‘A guerra que acabou com a paz”.

Acha que é justo dizer que esta foi uma guerra que esteve na origem de outras?

É uma boa pergunta. Acho que a I Guerra Mundial não levou diretamente à II Guerra Mundial. Houve 20 anos entre as duas e muitas decisões foram tomadas – ou não – mas o que a I Guerra Mundial fez foi criar as condições para tornar possível a II Guerra Mundial. E deixou uma Europa mal, deixou instabilidade na Europa Central, deixou uma Alemanha, uma Itália, uma Hungria ressentidas e uma França desiludida. Acho que o que a I Guerra Mundial fez foi ajudar a criar a possibilidade de uma II Guerra Mundial, mas muitas outras coisas contribuíram para isso. Por exemplo, no final dos anos 20, houve a Grande Depressão, que não é um resultado da I Guerra Mundial, mas que certamente conduziu à II Guerra Mundial.

Olhando para a realidade à nossa volta, hoje em dia, no mundo, vê os mesmos tipos de elementos que conduziram à I Guerra Mundial?

Bem, há semelhanças, mas também grandes diferenças. As semelhanças são que nós temos, nalgumas partes do mundo, alguns movimentos nacionalistas fortes, por vezes hostis a outras nacionalidades e isso não é bom. Temos ideologias revolucionárias, que começaram a perturbar a cena internacional, antes da I Guerra Mundial era o anarquismo, terrorismo, socialismo revolucionário e hoje em dia são mais ideologias inspiradas pela religião.

Então, sim, acho que temos semelhanças, mas também grandes diferenças.

É um mundo com uma ordem internacional muito maior, hoje em dia, antes de 1914 não havia Nações Unidas, por exemplo.

Em que parte do mundo vê maiores semelhanças?

Bem, uma semelhança é que temos partes do mundo com conflitos internos, nos quais temos grandes potências a envolverem-se eventualmente, então o Médio Oriente é sempre potencialmente perigoso, em parte por causa dos conflitos dentro do Médio Oriente, mas também porque há potências exteriores envolvidas, quer seja a Rússia, os EUA, a Turquia, o Irão etc… Também diria que o mar do sul da China e que o mar oriental da China são potencialmente perigosas, porque existem conflitos locais lá, mas também a possibilidade de outras potências se envolverem lá.

E sobre o que se passa no Iraque. Inclui-lo-ia nesta situação do Médio Oriente, que descreveu?

Sim. O Iraque é muito, muito perigoso porque não é só um Estado que corre o risco de se desintegrar, o que seria brutal para as pessoas que vivem lá, porque seria um Estado no qual seria muito, muito difícil viver lá. Já estão a ir para lá combatentes vindos da Síria, poderá influenciar a Turquia, porque os turcos estão muito preocupados com o que acontece nas suas fronteiras, também o Irão, os EUA poderão, possivelmente, envolver-se mais. Então, sim, eu penso que esta é uma situação muito perigosa.

É um pouco irónico um certo desejo de cooperação entre o Irão e os EUA agora por causa do que se passa no Iraque.

É curioso. Porque, durante tempo, no entender dos EUA o Irão foi um grande inimigo no Médio Oriente e claro que, no Irão, os EUA são o “grande satã”. E claro que eles tendem de demonizar-se uns aos outros, encararem-se uns aos outros como poderes perigosos, mas acho que o que estão a perceber agora é que ambos têm muito a perder se o Iraque se desintegrar. Os EUA não querem ver uma turbulência completa no Médio Oriente, com conflitos a espalharem-se por todo o lado. E o Irão certamente que também não quer ver o Iraque desintegrar-se nas suas fronteiras. Então acho que eles estão a reconhecer que têm interesses em comum. Acho que, se houver alguns desenvolvimentos nesta situação terrível no Iraque, este é um deles.

Vimos um artigo escrito pelo ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair, afirmando que o que se passa no Iraque não é culpa da invasão de 2003. Concorda com ele?

Não. Ele procura confortar-se a ele próprio ao pensar isso. Mas eu acho que aconteceu com a invasão e a ocupação do Iraque foi a criação de uma situação instável. Muitas pessoas, incluindo eu, ficaram satisfeitos pelo facto de Saddam Hussein ter saído do poder, mas foram cometidos erros nessa altura – como a dissolução do partido Baas e a dissolução do Exército iraquiano – sem que se tivessem apercebido do preço que se iria pagar por isso. As pessoas do Iraque é que estão a pagar o preço. Não sabemos quantos iraquianos foram mortos, mas todos os dias estão a ser mortos. É uma situação altamente instável e eu penso que devido à invasão, tanto os EUA como a Grã-Bretanha, têm uma grande responsabilidade nisso.

Quando olhamos para a abordagem do atual Presidente dos EUA, Barack Obama, vemos algumas diferenças em relação a George W. Bush. Ele tem evitado intervir diretamente em vários cenários, como sejam a Síria, a Ucrânia ou o Iraque. Acha que é porque ele aprendeu a lição – dada pela I Guerra Mundial – de que não há guerras rápidas?

Acho que aprenderam, mas a principal questão é que eles não querem ter tropas no terreno. Não estão preparados para colocar recursos nisso. O que penso é que eles perceberam as dificuldades de construção de uma Nação. Mas também há uma tendência dos EUA para usarem a tecnologia, isso data já do início do século XX. Acho que eles estão a apostar em tecnologia, como por exemplo os drones, mas isso não se está a revelar muito bem sucedido. Está a causar problemas aos EUA, porque usar mortes dirigidas a pessoas de que eles não gostam. Muitas vezes sem um processo próprio. E isso, no final, vai causar problemas aos EUA. Os americanos estão a apostar muito na tecnologia porque eles não querem pôr tropas no terreno. Mas, na realidade, acho que estão a arranjar problemas para si próprios.

Quando olhamos para a I Guerra Mundial percebemos que não foi uma guerra curta. Mas o que a causou? A ação de Gravilo Pincip é o única a culpar? Ou havia já um contexto?

O contexto é muito importante porque é preciso saber porque é que as Nações reagiram da forma que reagiram. Áustria-Hungria tinha uma preocupação crescente em relação à Sérvia, como uma ameaça e um foco de problemas para a sua população eslava. A Áustria-Hungria tinha muitos sérvios, croatas e eslovenos a viver no seu território. Então eles viam a Sérvia como uma ameaça real. Apenas estavam à espera de uma desculpa para fazer qualquer coisa em relação a isso. Então quando o assassínio aconteceu, foi a desculpa perfeita. Mas se não tivessem tido essa desculpa, quem sabe. Se Gravilo Princip tivesse falhado ou se o arquiduque [Francisco Fernando] não tivesse ido a Sarajevo, talvez a Europa não tivesse tido uma crise no verão de 1914. Talvez em 1915 o contexto internacional já fosse diferente. Mas quem sabe. Nunca saberemos. É uma combinação do contexto com o incidente, que fez com que se tornasse mortífero.

E em relação à personagem de Gravilo Princip, propriamente dita.

Ele ainda causa grandes divisões nos Balcãs, hoje em dia…

Sim, sim. Acho que na parte sérvia da Bósnia, República Srpska, ergueram-lhe uma estátua. Aí, ele é visto como um herói. E entre os nacionalistas sérvios ele é visto não como terrorista, mas como um combatente da liberdade. Embora eu ache que nem todos os sérvios o veem desta forma. As opiniões dividem-se muito sobre isto. No meu entender, ele é alguém que era muito jovem, que se radicalizou, e pensou que um ato de terror era a maneira de fazer cair toda a estrutura. Eram ideias terroristas revolucionárias na altura. Não acho que ele pensou noutras formas pacíficas de provar a mudança. Ele só pensou em matar o opressor e que, de alguma forma, tudo iria mudar. Isso era comum nessa altura. Houve vários assassínios de altas figuras por anarquistas e revolucionários.

Alguns historiadores dizem que Gravilo não agiu como sendo apenas sérvio, mas em defesa do povo eslavo, qualquer que fosse a sua religião.

Não se sabe o suficiente sobre ele. Mas parece que o que pretendia não era tanto uma “grande Sérvia”, mas um Estado eslavo, foi daí que surgiu o sonho da Jugoslávia. Das pessoas com quem ele trabalhava, um era muçulmano, outro croata, então estes grupos de radicais, na Bósnia, incluíam não-sérvios. Claro que o apoio veio da Sérvia, foi onde arranjaram as armas, foi onde tiveram treino, foi de onde entraram na Bósnia.

Olhando para a ordem mundial de hoje,quão importantes foram os 14 pontos de Wodrow Wilson, a Conferência de Paris a a Liga das Nações?

Essas ideias de Wilson já existiam, não foram propriamente dele, mas ele era um grande orador, muito eloquente. Ele pegou em ideias como a do desarmamento, resolução de conflitos entre nações, livre-comércio entre países, autodeterminação das nações, levou-as para o debate internacional e daí nunca mais saíram. A Liga das Nações, que foi entendida como um fracasso porque não conseguiu prevenir a II Guerra Mundial, introduziu, apesar de tudo, um conceito internacional em que todos somos responsáveis uns pelos outros e de que devemos trabalhar juntos para tornar o mundo melhor. Muito do que se fez foi continuado depois nas Nações Unidas. A Organização Internacional do Trabalho foi levada para a ONU e ainda hoje existe. Foi um passo em frente muito importante.

Mas o facto de existirem as Nações Unidas não evitou muitas guerras. Qual é o problema? É a constituição do Conselho de Segurança da ONU?

Não acho que seja. Bem, não me parece bem a ideia de ter um Conselho de Segurança que reflete as potências que que saíram da II Guerra Mundial e não as grandes potências como elas são hoje em dia. Temos a Grã-Bretanha e a França como membros separados, quando deviam integrar um único lugar para a UE. E depois não estão representados países como a Índia e o Brasil.

O problema é a forma como o Conselho de Segurança está desenhado.

Porque continua a haver mais e mais guerras?

A resposta simples é porque há algo de errado na natureza humana. De alguma forma ainda achamos que se usarmos a violência uns contra os outros isso, de alguma maneira, irá resultar. Há grupos de pessoas preparadas para usar a violência para os seus próprios fins. Há áreas do mundo em que o poder do Governo central é fraco. Um dos desenvolvimentos nas sociedades da Europa foi o monopólio da violência nas mãos dos governos. Podemos não gostar disso, mas permite estabilidade. Mas também há Estados falhados e partes de cidades no mundo desenvolvido onde a polícia não entra e quem manda são os gangues organizados. Também há líderes políticos oportunistas que estão preparados para usar a guerra.

Concorda que algumas das guerras atuais são resultado da divisão que foi feita no mundo após a I Guerra Mundial?

É fácil culpar a divisão do mundo que foi feita após a I Guerra Mundial.

Temos que lembrar que muita dessa divisão estava já feita quando a conferência de paz se reuniu. O império austro-húngaro já se tinha desfeito em pedaços e já tínhamos a Polónia, a Checoslováquia e a Jugoslávia a criarem-se a si próprias. Isso não foi criado em Paris, foi criado no terreno. As fronteiras no Médio Oriente foram desenhadas. Pode-se criticar essas fronteiras, mas é difícil dizer agora o que teria sido melhor e teria resultado melhor. Acho que outras coisas contribuíram para as guerras, não poria toda a culpa da conferência de Paris. O problema real foi que, após a I Guerra Mundial, as condições para uma paz duradoura não foram asseguradas ou não existiam. Havia um assunto pendente com a Alemanha, grande parte da população alemã apoiava a ideia de vingança, havia a Rússia que, de alguma forma, estava excluída da ordem internacional. Não foi um altura fácil para se fazer a paz. A pergunta é: Olhando para trás, como teríamos feito melhor? E a resposta a essa pergunta não é nada fácil.

Redação

1 Comentário

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  1. numa sociedade AUTORITÁRIA,

    numa sociedade AUTORITÁRIA, patriarcal, separadora, a força usada por adultos contra frágeis crianças é o modelo copiado pelos frageis  “amadurecidos”. isso me parece tão… RELIGIOSO…

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