As disputas no seio da Primeira Internacional

A Associação Internacional dos Trabalhadores (Primeira Internacional) foi fundada em Londres, em 1864. Foi dissolvida em 1876 na Filadélfia (EUA). Neste meio tempo, foi capaz de mobilizar milhões de trabalhadores em prol de um programa revolucionário. Foi também palco de renhidas disputas entre Karl Marx e Friedrich Engels, contra os anarquistas. É neste contexto que aparece a carta escrita por Engels, tecendo críticas à tática anarquista, bem como à própria doutrina, estranha ao materialismo histórico e a dialética.

Poucos meses após a feitura desta carta, Bakunin e seus seguidores eram expulsos da Primeira Internacional, cisão jamais superada posteriormente. A história tratou de demonstrar a correção do socialismo científico, em contraposição ao idealismo pequeno burguês, travestido com semblantes anarco revolucionários. A destacar também que a crítica de Engels contra a polícia não o impediu nunca, nem a Marx, de por a termo o embuste das doutrinas bakuninistas. Só falta agora aparecer algum “gênio” para dizer que Engels ou Marx eram “estalinistas”… Segue a carta:

Do Marxists.org

Carta a Theodor Cuno (em Milão)

Friedrich Engels

Londres, 24 de Janeiro de 1872

Bakunin, que até 1868 tinha intrigado contra a Internacional, aderiu então, depois do fiasco sofrido no Congresso da Paz em Berna à Internacional e começou imediatamente a conspirar dentro dela contra o Conselho Geral. 

Bakunin tem uma teoria à parte, uma mixórdia de proudhonismo e de comunismo, em que, primeiramente, o principal é que não considera como mal principal a eliminar o capital, a oposição de classe entre capitalistas e operários assalariados surgida através do desenvolvimento histórico, mas o Estado. 
Enquanto a grande massa dos operários sociais-democratas partilha conosco a opinião de que o poder de Estado nada mais é do que a organização que as classes dominantes — proprietários fundiários e capitalistas — adotaram para proteger os seus privilégios sociais, Bakunin afirma que foi o Estado que criou o capital, que o capitalista apenas tem o seu capital graças ao Estado. 

Assim, como o Estado é o mal principal, seria necessário abolir, antes de mais nada, o Estado, e então o capital iria por si próprio para o diabo; ao passo que nós, inversamente, dizemos: abolis o capital, a apropriação do conjunto dos meios de produção nas mãos de uns poucos, e o Estado cairá por si próprio. 

A diferença é essencial: a abolição do Estado sem um revolucionamento social prévio é um contra-senso, a abolição do capital é precisamente o revolucionamento social e implica uma alteração do conjunto do modo de produção. 

Como, porém, o Estado é para Bakunin o mal fundamental, não é permitido fazer nada que possa manter o Estado em vida, i. e., de qualquer Estado, república, monarquia ou qualquer outro. Daí, portanto, abstenção completa de toda a política. Praticar um ato político, mas especialmente participar numa eleição, seria uma traição ao princípio. 

Deve fazer-se propaganda, desacreditar o Estado, organizar-se, e, quando se tiver do seu lado todos os operários, portanto a maioria, destituem-se todas as autoridades, abole-se o Estado e coloca-se em seu lugar a organização da Internacional. Este grande ato, com que se inicia o Império Milenário, chama-se liquidação social.

Tudo isto soa como extremamente radical e é tão simples que se pode aprender de cor em cinco minutos, e por isso esta teoria bakuninista também encontrou rapidamente eco em Itália e na Espanha entre jovens advogados, doutores e outros doutrinários. 

A massa dos operários, porém, nunca se deixará convencer de que os assuntos públicos do seu país não são simultaneamente os seus próprios assuntos; eles são por natureza políticos e acabam por abandonar quem lhes quiser fazer crer que devem deixar a política de lado. Pregar aos operários a abstenção da política em todas as circunstâncias significa empurrá-los para os braços dos padres ou dos republicanos burgueses.

Ora, uma vez que, segundo Bakunin, a Internacional não foi criada para a luta política mas para poder imediatamente tomar o lugar da velha organização do Estado durante a liquidação social, ela terá de aproximar-se tanto quanto possível do ideal de Bakunin da sociedade futura. 

Nesta sociedade não existe, antes de mais, nenhuma autoridade, pois autoridade = Estado = mal em absoluto (a verdade é que nada nos dizem acerca de como pôr uma fábrica a funcionar, conduzir um comboio ou um navio sem haver uma vontade que decida em última instância, sem uma direção una). 

Acaba também a autoridade da maioria sobre a minoria. Cada indivíduo, cada comunidade são autônomos, mas Bakunin volta a nada dizer acerca de como é possível uma sociedade, mesmo que apenas com duas pessoas, sem que cada uma delas ceda uma parte da sua autonomia.

Portanto, a Internacional tem também de se orientar segundo este modelo. Cada secção é autônoma e, em cada seção, cada indivíduo. Para o diabo com as Resoluções de Basileia que conferem ao Conselho Geral uma autoridade perniciosa e desmoralizadora para ele mesmo! Mesmo que seja conferida voluntariamente, esta autoridade tem de acabar precisamente porque é autoridade!

Aqui tem, em resumo, os pontos principais do embuste. Mas quem são então os originadores das Resoluções de Basileia? Ora, o próprio senhor Bakunin e consortes!

Quando estes senhores, no Congresso de Basileia, viram que não conseguiriam fazer passar o seu plano de transferir o Conselho Geral para Genebra, i. e., de o apanhar nas mãos, recomeçaram de outra maneira. 

Fundaram a ‘Alliance de la Démocratie Sociale’, uma sociedade internacional dentro da grande Internacional com o pretexto que V. encontra agora de novo na imprensa bakuninista italiana, p. ex., no Proletário, no Gazzettino Rosa, de que para as fogosas etnias latinas de sangue quente seria necessário um programa mais pronunciado do que para os nórdicos, frios e lentos. 

Este planozinho falhou pela resistência do Conselho Geral, que naturalmente não podia tolerar nenhuma organização internacional separada dentro da Internacional. 

Desde então, esse plano voltou a aparecer sob as formas mais diversas, em ligação com os esforços de Bakunin e da sua gente no sentido de substituírem o programa da Internacional pelo programa bakuninista, ao mesmo tempo que, por outro lado, a reação, desde Jules Favre e Bismarck até Mazzini, sempre que era preciso atacar a Internacional, se valia precisamente da oca frase fanfarrona bakuninista. 

Daí a necessidade da minha declaração de 5 de Dezembro contra Mazzini e Bakunin, que foi também publicada no Gazzetino Rosa.

O núcleo da bakuninistada consiste num par de dúzias de pessoas no Jura que, no total, mal têm atrás de si 200 operários; a vanguarda são os jovens advogados, doutores e jornalistas em Itália que agora se mostram por toda a parte como porta-vozes dos operários italianos, alguns igualmente em Barcelona e Madrid e, aqui e ali, um indivíduo isolado — quase nunca operários — em Lyon e Bruxelas. Por aqui há um único exemplar — Robin. 

A Conferência convocada por pressão das necessidades em vez do congresso, que se tornara impossível, deu-lhes o pretexto, e, como na Suíça a maioria dos refugiados franceses se passaram para o seu lado, em virtude de estes (proudhonianos) aí terem encontrado tons aparentados e por motivos pessoais, eles iniciaram a campanha. 

Naturalmente que existem por toda a parte na Internacional minorias descontentes e gênios não reconhecidos, com os quais eles contavam — e não sem razão. Presentemente, as suas forças de combate são as seguintes:

1. O próprio Bakunin — o Napoleão desta campanha.

2. Os 200 jurassianos e 40-50 da secção francesa (refugiados em Genebra).

3. Em Bruxelas, Hins, redator do Liberte, que, no entanto, não é abertamente por eles.

4. Aqui, os restos da Section Française de 1871, nunca reconhecida por nós, que já se cindiu em três partes que se combatem entre si, e ainda cerca de 20 lassallianos do tipo do senhor von Schweitzer, expulsos da seção alemã (em virtude de terem requerido a saída em massa da Internacional), que, como defensores da extrema centralização e de uma organização rígida, ficam magnificamente na liga dos anarquistas e autonomistas.

5. Em Espanha, alguns amigos pessoais e adeptos de Bakunin que influenciaram fortemente os operários, especialmente em Barcelona, pelo menos do ponto de vista teórico. Mas, em contrapartida, os espanhóis dão muita importância à organização e a falta desta nos outros chama-lhes a atenção. Só no congresso espanhol em Abril se saberá até que ponto Bakunin pode aí contar com êxito e, como lá os operários predominarão, não estou com medo.

6. Finalmente, em Itália, as secções de Turim, Bolonha e Girgenti pronunciaram-se, pelo que sei, pela convocação do congresso antes do tempo.

A imprensa bakuninista afirma que 20 seções italianas teriam aderido a eles: eu não as conheço. De qualquer modo, a direção está quase por toda a parte nas mãos de amigos e adeptos de Bakunin, que falam grosso mas, se a questão for analisada com mais precisão, verificar-se-á que não têm muita gente atrás de si, pois no fim de contas a grande massa dos operários italianos continua até hoje e continuará a ser mazzinista enquanto a Internacional lá se identificar com a abstenção política.

Mas, de qualquer modo, o que acontece em Itália é que, por enquanto, quem fala de alto na Internacional é a bakuninistada. O Conselho Geral não tem intenção de se queixar disso; os italianos têm o direito de fazer tantos disparates quantos quiserem, e o Conselho Geral apenas se oporá a isso pela vida do debate pacífico. 

As pessoas têm também o direito de se declararem a favor do congresso, no sentido dos jurassianos, embora, de todas as formas, seja muito estranho que secções que acabaram de aderir e que não podem saber nada de nada tomem, sem mais, partido numa causa destas, especialmente antes de terem ouvido ambas as partes! 

A este respeito expus francamente aos turinenses a minha opinião e fá-lo-ei igualmente às outras seções que se pronunciaram da mesma forma. É que cada uma dessas declarações de adesão é indiretamente uma aprovação das falsas acusações e mentiras contidas na circular contra o Conselho Geral, que de resto também emitirá em breve a sua circular sobre a questão. 

Se V. puder impedir uma declaração semelhante dos milaneses até ao aparecer desta, satisfará todos os nossos desejos.

O mais cômico é que estes mesmos turinenses que se declaram a favor dos jurassianos e que, portanto, nos criticam aqui por autoritarismo exigem agora, subitamente, do Conselho Geral que intervenha autoritariamente contra os seus rivais da Federazione Operaria de Turim, de uma maneira como nunca o fez até agora, que expulse Beghèlli, do Ficcanaso, que nem sequer pertence à Internacional, etc. 

E tudo isto mesmo antes de nós pelo menos termos ouvido o que ela tem a dizer sobre isso!

Na passada segunda-feira enviei-lhe a Révolution Sociale com a circular do Jura, um número do Egalité de Genebra (do qual já não tenho infelizmente mais nenhum com a resposta do Comité Federal de Genebra, que representa vinte vezes mais operários do que os jurassianos e um Volksstaat, que lhe mostra aquilo que na Alemanha as pessoas pensam acerca desta história. 

A Assembleia Regional saxônica — 120 delegados de 60 localidades — pronunciou-se unanimemente a favor do Conselho Geral. O Congresso belga (25-26 de Dezembro) exige revisão dos Estatutos mas no congresso regular (em Setembro). De França chegam-nos diariamente declarações de aprovação. 

Aqui em Inglaterra, evidentemente que nenhuma dessas intrigas encontra terreno favorável. E o Conselho Geral seguramente que não convoca nenhum Congresso extraordinário para agradar a um par de intriguistas e presunçosos. 

Enquanto estes senhores se mantiverem num terreno legal, o Conselho Geral deixa-os atuar à vontade, pois esta coalizão dos elementos mais heterogêneos em breve se irá desfazer; porém, logo que façam algo contra os Estatutos ou as resoluções do Congresso, o Conselho Geral cumprirá a sua obrigação.

Se considerarmos em que momento — precisamente quando por toda a parte todos os cães se lançam sobre a Internacional — esta gente empreende a sua conspiração, não podemos renunciar à ideia de que os senhores da polícia internacional têm as mãozinhas metidas na jogada. E assim é. 

Em Béziers, os bakuninistas de Genebra têm como correspondente o commissaire central de police. Dois dos principais bakuninistas, Albert Richard, de Lyon, e Blanc, estiveram aqui e afirmaram a um operário de Lyon, Scholl, a quem se dirigiram, que o único meio de derrubar Thiers era levar de novo Bonaparte ao trono e, precisamente por esse motivo, eles andavam a viajar com dinheiro bonapartista para fazerem entre os refugiados propaganda a favor da restauração bonapartista! 

A isto chamam esses senhores abstenção da política! 

Em Berlim, o Neuer Social-Demokrat, pago por Bismarck, toca exatamente a mesma música. Por enquanto deixo em suspenso a questão de até que ponto a polícia russa tem a mão metida nisso, mas Bakunin esteve enterrado até às orelhas na história de Nétchaev (é certo que ele o nega, mas temos aqui os relatórios originais russos, e, como Marx e eu entendemos russo, ele não poderá enganar-nos em nada). 

E Nétchaev ou é um agent provocateur russo ou agiu como se o fosse e, além disso, Bakunin tem entre os seus amigos russos toda a espécie de gente suspeita.

Lamento que V. tenha perdido o seu lugar. Eu tinha-lhe escrito expressamente que evitasse tudo o que pudesse conduzir a isso, pois a sua presença em Milão era para a Internacional muito mais importante do que o pequeno efeito que se pode causar aparecendo em público; que pela calada também se poderia fazer muita coisa, etc. 

Se puder ajudá-lo em traduções, etc, fá-lo-ei com muito prazer. Diga-me apenas de que línguas e para que línguas V. pode traduzir e como eu lhe posso ser útil.

Então esses porcos da polícia apreenderam também a minha fotografia. Junto aqui outra e peço-lhe dois exemplares das suas, um dos quais deverá servir para convencer a menina Marx a ceder-me uma do seu pai para si (só ela tem ainda um par de boas fotografias dele).

Peço-lhe ainda para ter algum cuidado com todas as pessoas que estão em ligação com Bakunin. É uma propriedade de todas as seitas manterem-se firmemente unidas e intrigarem: pode estar certo de que tudo o que V. lhes comunicar segue imediatamente para Bakunin. 

Um dos seus princípios fundamentais é que cumprir promessas e outras coisas do gênero são preconceitos puramente burgueses que o verdadeiro revolucionário tem de tratar sempre com desprezo no interesse da causa. Na Rússia, ele diz isto abertamente, na Europa ocidental é uma doutrina secreta.

Escreva-me o quanto antes; seria muito bom se conseguíssemos que a seção de Milão não afinasse pelo coro das restantes secções italianas.

Redação

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  1. Karl Marx segundo Eric Voegelin

    https://jornalggn.com.br/fora-pauta/karl-marx-segundo-eric-voegelin

    Karl Marx segundo Eric Voegelin, tradução de Mendo Castro Henriques

    1.1. Marx: história e lenda.

    Ao iniciar o estudo de Marx, nunca é demais acentuar que a polémica partidária dificultou o acesso à obra; muitos escritos considerados secundários permaneceram inéditos até à edição MEGA de 1927-32 e, ainda em vida, a pessoa histórica de Marx desapareceu debaixo da figura mítica. Nos marxistas da primeira geração e nos da revolução russa, cresceu a lenda que não valia a pena conhecer o filósofo precoce que, apenas a partir de 1845 desenvolvera as verdadeiras intuições no Manifesto e em O Capital, e que foi fundador da 1ª Internacional. Debateu-se, depois, se o verdadeiro Marx era o de Bernstein, Kautsky, Rosa Luxemburgo ou Lenine. Só após o Instituto Marx-Engels-Lenine de Moscovo e os sociais-democratas alemães desenterrarem os manuscritos dos arquivos começou uma interpretação séria na qual se destacam as obras de S.Landshut e J.P. Mayer Der historische Materialismus. Die Frühschriften, 2 vols., Leipzig, 1932.

    Por detrás desta história de incompreensão e redescoberta está a tragédia do activista. Para passar do velho para o novo mundo, Marx exigia uma metanóia, semelhante à conversão de Bakunine mas obtida através de um movimento revolucionário. A revolução seria uma mudança radical do homem: permitiria derrubar as instituições e purificar a classe operária. Libertaria a classe oprimida da “porca miséria” (Drecke) e permitiria recriar a sociedade. Marx não queria criar primeiro o povo eleito e depois fazer a revolução: pretendia que a criação do “povo eleito” resultasse da experiência da revolução. Esta idéia é profundamente trágica porque, caso não houvesse revolução, o coração humano não mudaria. O carácter insensato da idéia permaneceria mascarado até que a experiência fosse levada a cabo. E ao contrário do que se passou com o anarquismo de Bakunine, este carácter peculiar da idéia marxiana foi agravado pela visão comunista do novo mundo.

    1.2. A visão dos reinos da necessidade e da liberdade.

    Marx sobressai entre os revolucionários da sua geração pelos superiores poderes intelectuais. Evoca um novo mundo mas não cai nas propostas delirantes de abolição da sociedade industrial e nas utopias socialistas. Jamais aceitaria a metamorfose comteana da tradição francesa católica dos clercs em intelectuais positivistas, desejosos de conquistar o poder temporal. Através de Hegel e dos jovens hegelianos, herdara as tradições do protestantismo intelectualista luterano, defensor da verdadeira democracia realizada em cada homem. No mundo do sistema industrial, o novo reino da liberdade resultaria da experiência emancipadora da revolução.

    Esta visão não foi um apenas um episódio da juventude; permaneceu constante até ao fim da vida. Em O Capital vol.3, reflecte na grande vantagem do sistema de produção capitalista: maior produtividade e, portanto, redução do horário laboral. O homem civilizado e o primitivo têm de lutar com a natureza para satisfazer carências; nenhuma revolução abolirá este reino da necessidade natural, que continuará a crescer à medida das necessidades humanas. A liberdade neste domínio será, quando muito, a regulamentação racional do metabolismo humano. O homem socializado, der vergesellschaftete Mensch, poderá controlar colectivamente este metabolismo, reduzindo as horas de trabalho e as perdas de produção e organizando os lazeres em vez de os deixar ao acaso. Só depois começa o reino da liberdade, a finalidade que não resulta da base material mas da experiência da revolução.

    A distinção entre os dois reinos é bastante clara. A abolição da propriedade privada não é o fim em si mesmo e o controle colectivo só interessa para diminuir as horas de trabalho. As horas de lazer ganhas são o solo no qual o reino da liberdade poderá enraizar-se. A burguesia usa esse tempo para ócio, entretenimento recreio, jogo, divertimento. Mas será isto preencher a liberdade? Dados os conhecimentos filosóficos de Marx, por reino da liberdade dever-se-ia entender a acção concretizadora das capacidades humanas, algo de semelhante às aristótélicas scholé e bios theoretikos. O decisivo é que a liberdade não provenha da base material mas da experiência de revolução. A superação (Aufhebung) do trabalho convertê-lo-ia em auto-determinação (Selbstbetätigung).

    1.3. O descaminho de Marx 1837-1847.

    De 1837 a 1847 Marx clarificou os pensamentos que tiveram a expressão tardia atrás esboçada. Após a visão, impunha-se a acção revolucionária. O reino da necessidade seria a indústria menos a burguesia. O reino da liberdade tinha de crescer por si e não podia ser planeado. Entre adotar a existência romântica à Bakunine, ou o silêncio, optou por preparar a revolução.

    1.4. Lenda do Jovem Marx.

    Se Marx se sentisse obrigado a produzir uma renovatio revolucionária nos seus contemporâneos através de sua autoridade espiritual, nada resultaria exceto o seu drama pessoal. Mas bastava-lhe mover o Aqueronte no homem, para a liberdade resultar da revolução e a revolução da necessidade. Defendia um ideal de dignidade humana; mas, na ação, desprezava o homem. A revolução que derrubaria a burguesia dependeria de: 1) A análise dos factores do capitalismo que desintegravam o sistema 2) A forja da organização proletária que iria tomar o poder. Em vez de se tornar o dirigente da revolução, Marx escreveu o Manifesto como apelo à organização das forças que iriam executar a revolução inevitável. Em vez de descrever a sociedade futura escreveu O Capital, análise da sociedade moribunda. A partir de 1845 tornou-se o parteiro da revolução. E foi esta transição do fazer a revolução para o preparar a revolução que constituiu o seu descaminho. A imensidade dos trabalhos preparatórios ensombrou a experiência escatológica que motivara a visão revolucionária e a culminância no reino da liberdade.

    1.5. O movimento marxista. Revisionismo.

    O descaminho ensombrou a idéia mas não aboliu a tensão revolucionária. As actividades preparatórias puderam ser imitadas por quem não tinha a experiência originária de Marx, provocando a morte do espírito e da esperança de renovação num mundo novo após a revolução. Os marxistas eram quase todos almas já mortas que apenas experimentavam a tensão entre o presente miserável e o imaginado futuro radioso e que desejavam a melhoria da sorte dos operários.

    O descaminho intensificou-se com a passagem do tempo. A preparação intelectual e organizacional da revolução tornou-se um modo de vida. Bernstein pôde afirmar: “O que vulgarmente se chama a finalidade derradeiro do socialismo nada representa para mim; o movimento é tudo “; e Kautsky no Neue Zeit de 1893: “O partido socialista é um partido revolucionário; não é um partido que faça revoluções”. A revolução foi transformada em evolução. Horários, salários e controles laborais poderiam ser adquiridos por legislação. A ala revisionista tornara-se um movimento de reforma social.

    Se no domínio das idéias estes problemas marxistas têm pouco interesse, já no da história são importantíssimos. Para um Kautsky convicto de que revolução é inescapável, o revolucionário apenas tem de esperar que a situação esteja madura para agir. O revolucionário genuíno aguarda; o utópico faz aventuras. Este descaminho quase cômico de Kautsky aparece já no Marx de 1848-50. Até à revolução de Fevereiro, Marx esperava a grande revolução. A secção 4 do Manifesto revela esse estado de espírito: “A revolução burguesa na Alemanha será apenas o prelúdio de uma evolução proletária imediatamente subsequente”. Quando a revolução falhou, foram necessárias muitas explicações. A primeira fase do falhanço foi explicada em A Luta de Classes em França,1850; a segunda fase em O 18 Brumário de Luís Napoleão, 1852. Em 1850, no Discurso à Liga Comunista desenvolve pela primeira vez a táctica da luta de classes, cunhando a palavra de ordem “revolução permanente”. Depois de grande intervalo escreve A Guerra Civil em França, 1871 para explicar o falhanço da Comuna. Após a morte de Marx, Engels prosseguiu estas explicações. Para a história da Liga dos Comunistas, 1885, prevê a revolução para breve, efabulando a existência de ciclos imaginários de 15 ou 18 anos. No prefácio de 1895 à reedição de A Luta de Classes em França, fascinado com a existência de dois milhões de votantes sociais-democratas, Engels louva-se nos excelentes resultados dos processo legais de luta. Na expansão da Social-Democracia, vê um fenômeno semelhante ao crescimento do Cristianismo na decadente sociedade romana. Bismarck é o Diocleciano alemão. E como se vê, Kautsky podia razoavelmente considerar-se o portador do facho marxiano.

    1.6. O movimento marxista. Comunismo.

    O descaminho que levou à revolução comunista apresentou-se como regresso ao verdadeiro Marx. Após 1890 surgem radicais que já não aceitam o reformismo evolucionista. Lenine perante Kautsky tem a mesma atitude de Marx perante os sindicalistas ingleses. Pretende uma elite partidária, rejeita a cooperação democrática, quer a concentração do poder e despreza as massas que podem ser compradas mediante vantagens, como se vê no discurso de Genebra em 1908. Com as lições ainda frescas da revolução falhada de 1905, Lenine acentua os aspectos violentos do Comunismo. A Comuna de 1870 falhou porque não foi suficientemente radical, não expropriou os expropriadores, foi indulgente para com inimigos, tentou influenciar moralmente em vez de matar, não percebeu a acção militar e teve hesitações. Mas pelo menos lutou, demonstrando assim como lidar concretamente com o problema da revolução. A insurreição russa de 1905 mostra que a lição fôra aprendida e os Sovietes de trabalhadores e de soldados indicavam a actuação correcta.

    Reconquistava-se assim a tensão revolucionária ao nível da acção no reino da necessidade. A visão marxiana aparece em parte na obra de Lenine e nas fórmulas da Constituição Soviética de 1936, através do reconhecimento de que a revolução socialista ainda não produziu o verdadeiro reino comunista. A URSS é uma união de repúblicas socialistas guiadas pelo partido comunista em direcção a um Estado perfeito, distinção que remonta à Crítica do Programa de Gotha e Erfurt, 1875. Na fase original da revolução, o comunismo incipiente compensará o trabalho de acordo com a respectiva qualidade e quantidade. Na fase superior, o trabalho já não será meio de vida mas sim a maior necessidade da vida (Lebenbedürfnis). O princípio então será, de cada um conforme a sua capacidade, a cada um conforme a sua necessidade”. Esta fórmula de Enfantin em 1831, é parafraseada por Louis Blanc em 1839 e depois usada por Marx. Em O Estado e a Revolução, 1917, Lenine usou-a de modo que se tornou um dos ícones semânticos do comunismo russo. O contexto táctico da distinção reforça a visão de que o comunismo final é remoto (está a décadas de distância segundo Marx, a séculos segundo Lenine) enquanto a fase imediata é de pós-revolução. Os erros repetidos das explicações e das tácticas comunistas acerca do falhanço do milênio como passo necessário e inevitável para o respectivo advento, acabaram por cair no ridículo após a 1ª Grande Guerra, sendo estigmatizadas por Karl Kraus como o tic-tac dos tác-ticos marxistas.

    1.7. Triunfo político do marxismo.

    Num artigo de Enciclopédia de 1914, Lenine faz curta biografia de Marx e depois expôe o Materialismo Filosófico, baseando-se no Anti-Dühring, na dialéctica em Engels e Feuerbach e na concepção materialista da história, da página famosa da Crítica da Economia Politica. Depois vem luta de classes e doutrina econômica, socialismo e táctica. Não há uma só palavra sobre o “reino da liberdade” e as suas precárias realizações. Deste modo, Lenine e os leninistas recuperaram a tensão revolucionária no domínio da necessidade mas perderam-na ao nível da liberdade. A passagem do tempo obrigava-os a considerarem cada vez mais os acontecimentos históricos como passos tácticos. Após 1917 continuou a debater-se se aquela era mesmo a grande revolução, se apenas o seu começo, se deveria ser expandida no mundo, se estaria segura enquanto não fosse mundial, se poderia ser num só país, quanto tempo levaria o Estado a desaparecer, etc. Como após o triunfo russo não surgiu o Pentecostes da liberdade, surgiu a inquietação. O jogo da táctica servia para os dirigentes mas o comum não o entendia. Passaram dez, vinte anos, e o Estado não desaparecia. E a relevância doutrinária de Staline consiste em ter encontrado um substituto para o milênio – a pátria do socialismo. A injecção de patriotismo no comunismo russo é um apocalipse substituto para massas que não podem viver em permanente tensão revolucionária. Mas a táctica do descaminho não desaparece só porque uma paragem táctica foi oferecida às massas.

    2.1. Dialética invertida. A formulação da questão.

    A dialéctica da matéria é uma inversão consciente da dialéctica hegeliana da idéia, e corresponde a processos semelhantes praticados por sofistas, iluministas e anarquistas. Sob a designação mais respeitável de “materialismo histórico” ou mesmo “interpretação econômica da história e da política” é correntemente aceita e surpreende que o diletantismo filosófico de tais teorias não abale a sua influência maciça. Dialéctica é um movimento inteligível das idéias, quer na mente quer noutros domínio do ser ou, então, em todo o universo. Hegel interpretava a história dialecticamente por considerar o logos incarnado na história. No Prefácio à 2ª ed. de O Capital, 1873, afirma Marx que “o meu método dialéctico nos seus fundamentos não só difere do dos hegelianos mas é o seu oposto directo”. Na 1ª ed. declarava-se um discípulo do grande pensador contra os autores medíocres que o tratavam como um “cão morto”. Considera que na forma mistificada hegeliana, a dialéctica é glorificação do que existe. Na forma racional marxiana “explica a forma do devir no fluxo do movimento”. Ao compreender criticamente o que existe positivamente, também implica a compreensão da sua negação e desaparecimento.

    A intenção marxiana de inverter (umstülpen) Hegel, considerado como de pés para o ar, assenta numa incompreensão da dialéctica. Para Hegel a idéia não é o demiurgo do real, no sentido de “real” significar o fluxo de realidade empírica que contém elementos que não revelam a idéia. Hegel debate se a realidade empírica é apenas um fluxo ou se tem uma ordem; como filósofo, tem de discernir entre a fonte de ordem e os elementos que nela não cabem. A dialéctica da Idéia é a sua resposta a este problema. Mas Marx abole o problema filosófico da realidade precisamente antes de praticar a inversão; não inverte a dialéctica: recusa-se sim, a teorizar. Trinta anos antes mostrara na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 1843, que compreendia o problema da realidade mas que preferia ignorá-lo. Criticara então a concepção hegeliana por não estar à altura de conceito de realidade. (Cf. notas à secção 262 de CFDH). Os filósofos têm o hábito de questionar a realidade. Em vez de deixar a essência como predicado da realidade existente, extraem-na para sujeito, “die Prädicate selbst zu Subjekten gemacht”. Mais do que censurar Hegel, Marx estava a atacar a filosofia. Os filósofos, de facto, não deixam a realidade em paz nem se conformam que a ordem seja produto do real.

    2.2. A proibição-de-perguntar ou Fragesverbot.

    Mas se afinal Marx compreendia perfeitamente Hegel, como revela a passagem da Crítica da Economia Política, p.lv., onde mostra que a filosofia crítica discorda de visão pré-crítica, foi talvez por desonestidade intelectual que deliberadamente se fez desentendido. É um problema de pneumopatologia: receava os conceitos filosóficos, sofria de logofobia. Engels no Anti-Dühring, ed 1919, pp.10 e ss., dissera que o materialismo moderno é dialéctico pois dispensa uma filosofia acima do discurso das ciências. Enquanto a dialéctica pesquisar leis e processos de evolução, a filosofia é supérflua. Cada ciência quer clareza no contexto total das coisas e dos conhecimentos das coisas (Gesamtzusammenhang); mas uma ciência particular do total é supérflua e pode ser dissolvida em ciência positiva da natureza e da história. Também aqui, apenas uma pneumopatologia pode conferir sentido a estas afirmações de Engels. Os conceitos críticos conduziriam ao contexto total da ordem do ser ou ordem cósmica. Um contexto total não deve existir para o sujeito autônomo de que Marx e Engels são insignificantes predicados; a existir, é só como predicado de todos os sujeitos, nomeadamente Engels e Marx.

    Atingimos aqui o estrato profundo da revolta marxiana contra Deus. A análise levaria a reconhecer a ordem do logos na constituição do ser, esclarecendo como blasfêmia inútil a ideia marxiana de estabelecer um reino da liberdade e de mudar a natureza do homem através da revolução. Como Marx se recusa a utilizar uma linguagem crítica, temos de compreender os símbolos a que recorre. Marx criou um meio específico de expressão: quando atinge um ponto crítico, apresenta metáforas que forçam as relações entre termos indefinidos como se viu no já citado passo do Prefácio, p.xvii “o ideal nada mais é que o material transformado e traduzido na cabeça do homem”. Seria uma afirmação brilhante se condensasse numa imagem o que já fora dito de modo crítico. Mas o problema é que não existe esse contexto crítico. O que é “por na cabeça” ? É milagre fisiológico? Actividade mental? Acto cognitivo? Processo cósmico? Atente-se de novo na passagem da Kritik p.lv:

    1ª “Na produção social dos seus meios de existência, os seres humanos efectuam relações definitivas e necessárias que são independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um estádio definido de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais”. O estilo é fraco mas passagens anteriores explicaram cada um destes termos. 2ª “O agregado destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade”. Nada a dizer. 3ª “A estrutura econômica da sociedade é a base real na qual uma superestrutura jurídica e política surge e a que correspondem formas definitivas de consciência social”. Por que razão é a economia a base ? Nada no texto o justifica. 4ª “O modo de produção dos meios materiais de existência condiciona todo o processo da vida intelectual, social e política”. Mas que significa condicionar? Não se explica! 5ª “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é, pelo contrário, o seu ser social que determina a sua consciência”. Então passa-se sem mais de condicionar para determinar? E o que é ser e consciência? Esta passagem célebre ilustra como Marx salta de problemas concretos de economia e de sociologia para uma especulação com símbolos não-críticos. A metáfora é um intrumento ditatorial que impede o debate. E em rigor, é impossível uma análise crítica da doutrina marxiana, porque não existe uma teoria marxiana do materialismo histórico.

    2.3. Especulação pseudológica.

    Então que faz Marx ? Para referirmos a sua “teorização” efectuada com uma linguagem não-teórica, podemos falar de especulação pseudológica, uma teoria aparente apresentada como teoria genuína e que supôe uma filosofia genuína do logos que pode ser pervertida. A inversão marxiana é a transformação pseudológica da especulação de Hegel. Não inverteu Hegel porque o material não é a realidade de Hegel nem o seu ideal é a idéia de Hegel. A vulgata materialista afirma que tudo é disfarce de interesses materiais (económicos, políticos, etc.). Marx era um pouco mais sofisticado. Reteve a visão de Hegel de que a história é a realização do reino da liberdade. E Engels louva Hegel que se ocupou da ordem inteligível da história mas aponta-lhe a contradição entre a lei dinâmica da história e a insistência de que já existe o Inbegriff , o total da verdade absoluta. Censura a tentativa de interpretar a história como desdobramento de uma idéia que alcançou conclusão no presente. Reconhece, portanto, a falácia da gnose histórica: o decurso empírico da história não deve ser interpretado como o desdobramento da Idéia.

    Mas Engels engana-se redondamente ao argumentar que o processo da história, por natureza, não encontra conclusão natural mediante a descoberta de uma verdade absoluta. Pelo contrário, esse seria o único modo possível de encontrar uma conclusão para o decurso empírico da história; pela mesma razão, a história não é fechada mas permanece processo transcendental. A falácia desta gnose consiste na imanentização da verdade transcendental. Se quissesse dizer a verdade, Engels deveria afirmar que o fim-da-história imanentista não pára a historia e, portanto, não deve ser usado. Mas para Engels apenas a realidade empírica tem significado como desdobramento da idéia mas sem a conclusão, um eterno fluxo de Heraclito. A realidade hegeliana do desdobramento da idéia é abolida e fica só a realidade empírica como se fosse uma Idéia. Do mesmo modo se explica a incompreensão do problema de Hegel por parte de Marx como-se-fosse deliberada. Arrasta-se o significado da idéia para a realidade, sem encontrar o problema da metafísica da idéia.

    A confusão entre realidade empírica e a realidade da Idéia arrasta a dialéctica da idéia para a realidade empírica. O marxiano apresenta o filósofo como uma criança da escola que ainda acredita na conclusividade dos sistemas metafísicos. Mas então o marxismo não seria também um dia ultrapassável? Na confusão em que Engels se move, as dificuldades deste género são ultrapassáveis pelo simples esquecimento. Cem páginas adiante, Engels reconhece que Hegel descobriu que o decurso da história é a realização da liberdade; Hegel compreendeu que a liberdade é a intuição da necessidade. “A necessidade é cega apenas enquanto não compreendida”. A liberdade da vontade é apenas a capacidade de tomar decisões baseadas em conhecimentos (Sachkentnnis). E a liberdade progride com as descobertas tecnológicas. A máquina a vapor é a promessa da “verdadeira liberdade humana”. Que a encarnação do logos seja substitida pela máquina a vapor é bem um sintoma da indisciplina intelectual de Engels, na qual se conjugam várias tendências da desintegração ocidental.

    1. A gnose de Marx-Engels difere da de Hegel apenas por afastar um pouco o fim-da-história, para abarcar a curta etapa da revolução.

    2. Como só a forma da conclusão intelectual é de Hegel, não a substância, o intelecto programático torna-se o portador do movimento. Há um salto revolucionário para a natureza revolucionada do homem. Elimina-se o bios theoretikos. Só fica o conhecimento do mundo exterior. Quem conhecer o problema do propósito que causa indecisão, será livre. E Lenine, que se baseia mais em Engels do que em Marx, louva aquele no artigo de Enciclopédia em 1914 sobre Os Ensinamentos de Marx por transformar a coisa-em-si em coisa-para-nós. É a destruição da substância humana.

    3. A fórmula de que a liberdade consiste no domínio do homem sobre a natureza e sobre si próprio, lembra as posições de Littré, Mill e de outros intelectuais positivistas e liberais que são fontes de Engels. Há bastante espaço entre as capas do livro para desenvolver esta especulação pseudológica. Apesar de ter dissolvido a existência humana, Engels ocupa-se da moral cristã-feudal, burguês moderna e da moralidade proletária. Não existe outra ética absoluta a não ser o sistema proletário, tema maior da Endgültigkeit como sistema moral de sobreviver no fim.

    2.4. Inversão.

    Vimos de que modo o ataque anti-filosófico marxiano, estabelecendo a realidade empírica como objecto de investigação, utiliza um meio linguístico especial; a destruição logofóbica dos problemas filosóficos. Dentro do novo meio de expressão, nada se inverte; a gnose hegeliana é traduzida em especulação pseudológica. A inversão surge numa terceira fase em que o resultado das duas primeiras operações é construido como uma interpretação dos reinos do ser a partir da base da hierarquia ontológica.

    Para analisar esta tarefa de Marx, seria aqui necessária uma filosofia da cultura. Seria preciso explicar: 1) A natureza dos fenômenos culturais; 2) Que tais fenômenos podem ser considerados a partir de uma base da existência, por exemplo, a matéria; 3) E finalmente, o que é esta base da existência. Marx só fornece a fórmula de que a consciência é condicionada pela existência. Surgem ainda passagens sobre “ideologia”. KPO pp.lv e ss. As revoluções começam na esfera econômica e arrastam a superestrutura. Se isso significa que o conteúdo da cultura mais não é senão luta pelo domínio da esfera econômica, não é verdade.

    Em relação à base do fundo da existência, veja-se a nota 89 de O Capital, 1, sobre a tecnologia. A história dos elementos produtivos é mais relevante e mais fácil que a história das plantas e dos animais de Darwin porque, como afirma Vico, foi o homem que fez a história do homem. A tecnologia revela o comportamento do homem perante a natureza e portanto as concepções mentais, geistigen Vorstellungen, que delas provêm. É também mais fácil encontrar o cerne terreno das religiões, do que ir pelo caminho oposto e desenvolver as formas tornadas celestiais, “verhimmelten Formen” fora da relação com a vida. Um dos defeitos do naturwissenschaftenlichen Materialismus é excluir o processo histórico. Marx critica pois a história psicologizante que se reduz aos motivos terrenos das religiões. As religiões têm motivos econômicos, como se lê no Anti-Dühring, p.31: é preciso um princípio. E são estas as idéias que abalam o mundo?

     

    3.1. A gênese do socialismo gnóstico.

    O ponto de partida para o movimento do pensamento de Marx parece ser a posição gnóstica herdada de Hegel. O movimento do intelecto na consciência do ser empírico é a fonte maior de conhecimento. Donde a revolta contra a religião como esfera que reconhece um realissimum para além da consciência. A Dissertação de 1840-41 abre o prefácio com um ataque a Plutarco que ousa criticar Epicuro. A confissão de Prometeus “Numa palavra, odeio todos os deuses” é a sentença lançada contra os que se recusam a reconhecer a autoconsciência humana (das menschliche Selbstbewußtsein) como a suprema divindade.

    O contexto desta afirmação é o debate sobre a existência de Deus. Quaisquer demonstrações são logicamente inválidas. Os deuses são forma real apenas na imaginação e apenas demonstram a existência da auto-consciência humana. Levem papel-moeda para onde ele não é aceite, e logo verão o que acontece. Na prova ontológica, o ser que é dado é a auto-consciência humana. A forma geral das provas é esta: “Como o mundo está mal organizado, ou é irrazoável, Deus tem de existir”. Isto apenas significa que Deus só existe para quem o mundo é irrazoável. Marx sumaria o argumento afirmando que a “irrazão é a existência de Deus”. A soberania da consciência e a revolta anti-teística de Marx volve-se, depois, contra os sistemas de Aristóteles e de Hegel: de tal modo explicam o mundo que interrompem qualquer avanço ulterior da filosofia. Sendo impossível o aperfeiçoamento, os sucessores devem virar-se para a prática filosófica e para a crítica da situação. A mente teórica deve virar-se como vontade para a realidade mundana que existe independente dela. Esta semi-contemplação não é muito edificante. Marx estava interessado na filosofia pós-aristotélica de Demócrito e Epicuro porque sentia-a, pessoalmente, em paralelo com a situação pós-hegeliana. A cultura religiosa da Idade Média seria da “era da irrazão realizada”, mais uma falácia de Marx. Na verdade, quando se atinge o impasse de Hegel e a especulação filosófica se encontra “concretizada”, o que um realista espiritual deve fazer, é abandonar a gnose e regressar às experiências originais da ordem, à experiência de fé. A “necessidade” apontada por Marx era apenas um sintoma da sua revolta demoníaca contra Deus. Uma vez concretizada a auto-consciência, não concebia regressar à irrazão da fé; apenas poderia avançar para a liquidação da filosofia, a crítica radical do mundo e a instauração de novos deuses.

    A atitude de revolta efectua-se historicamente mediante a encarnação do logos no mundo, por meio da acção revolucionária. Para Hegel o logos estava encarnado na realidade e poderia ser descoberto pela reflexão do filósofo. O desdobramento da Idéia não era acção humana. A gnose era contemplativa. A definição da figura histórica como pessoa cujas acções se conformam a movimento da idéia não é receita para se tornar uma figura histórica. Esta perversão da gnose ativa surge com Marx.

    Marx era um paráclito sectário no mais puro estilo medieval, um homem no qual o logos se encarnara e através de cuja acção a humanidade se tornaria o receptáculo do logos tal como Comte, por exemplo. Não concebeu o espírito como um transcendental que desce para o homem, mas como a verdadeira essência do homem que se revela. O verdadeiro homem deve ser emancipado das cadeias. A sua auto-consciência divina é o fermento da história. A grande revolução trará o grande homem. A pneumopatologia de Marx consiste nesta auto-divinização e auto-salvação do homem; o logos intramundano é proclamado contra a ordem espiritual do mundo.

    3.2. Teses sobre Feuerbach

    Após o estudo do cerne do pensamento de Marx vejamos a Crítica das Teses de Feuerbach, um verdadeiro dicionário de conceitos marxianos. Se estudadas na sua sequência de 1 a 11, seguimos o curso da pseudo-lógica. Mas se invertermos parcialmente a ordem, (11,6,7,4,8,3,1,9,10) compreendemos a especulação. Aponta-se o conflito entre filosofia e não-filosofia na tese 11: “os filósofos só interpretaram o mundo; trata-se agora de o mudar”. Mas repare-se que “interpretação” e “mudança” não equivalem a “teoria” e “prática” de Aristóteles. Claro que a função do bios theoretikos é interpretar o mundo e ninguém sério sustenta que a contemplação é um substituto da prática. A prática tem relevância (es kommt darauf an). Ademais apenas se pode agir no mundo e não mudá-lo. A intenção de incorporar na prática uma atitude só é possível em contemplação. A “prática” de Marx pode mudar o “mundo” porque o mundo é compreeendido como fluxo de existência, no qual a idéia se move concretamente. O logos não é uma ordem espiritual, mas uma idéia movendo-se dialecticamente dentro do mundo. Esta praxis pseudológica é atingida se nos lançarmos ao fluxo.

    O “mundo” é o fluxo concreto de história. Não existe outro destino senão o social. Marx critica Feuerbach que dissolveu psicológicamente a religião como construção ilusória do homem mas ainda deixou o homem como entidade individual. Para Feuerbach, Deus é a essência do homem, Homo homini Deus. Agora, o espectro de Deus deve ser abatido. Na Tese 6 mostra-se insatisfeito com a dissolução de Feuerbach. Afinal o indivíduo mais não é senão a totalidade das relações sociais. É o meio social que nos confere crenças (Tese 7). É esse o facto da auto-alienação religiosa; e Feuerbach reduziu o mundo religioso à base mundana. Mas falta saber por qual razão a base mundana se separa de si própria e se fixa um céu. A contradição na base mundana tem de ser compreendida e revolucionada. (Tese 4).

    A vida social é essencialmente prática (Tese 8). A vida não tem dimensão pessoal nem dimensão contemplativa. Todos os mistérios que poderiam induzir o misticismo em teoria, encontram a sua solução racional na prática humana. Marx leva a cabo o fechamento hermético ou clausura do fluxo de existência prática contra todos os desvios e contemplações e condena tentativas de produzir a mudança social mediante a educação. As circunstâncias apenas podem mudar através da acção humana. A auto-transformação é a “prática revolucionária” (3). A idéia de um sujeito de conhecimento e de moral distinto de objectos de conhecimento e acção moral deve ser abolida e o sujeito concebido como objeccional, gegenstäntdliche, e a actividade humana como actividadde objeccional. A realidade deve ser concebida como actividade humana sensorial (sinnliche menschliche Tätigkeit) (1). Em termos de tradição filosófica, a prática revolucionária é definida como fluxo existencial em que o sujeito é objectificado e o objecto subjectivado. É essa a posição da humanidade social enquanto distinta do homem individual burguês bürgerliche, (9 e 10).

    3.3. Crítica do céu e crítica da terra.

    A crítica da religião é o pressuposto de toda a crítica. Agora o homem pode reconhecer que é o super-homem e deixar de se considerar Unmensch. A religião é a auto-consciência de um homem que ainda se não encontrou a si mesmo, a teoria geral de um mundo pervertido. Confere realidade imaginária à essência humana, Wesen, que não tem verdadeira realidade. A miséria religiosa é a manifestação de miséria real e, ao mesmo tempo, protesto contra ela. A religião é o grito dos oprimidos, “o ópio do povo”, KRR p.607. A destruição da religião é o começo da libertação, não é o fim. A felicidade ilusória do povo deve agora ser substituida pela sua felicidade real. As flores imaginárias na cadeia rosacruz não foram rasgadas para que a humanidade ficasse só com cadeias e sem consolação. Deve-se quebrar a cadeia e a flor. 607 ff. A crítica do céu deve ceder o lugar a uma crítica da terra, a teologia à política.

    Para levar a cabo esta crítica do direito e da política, Marx não critica instituições mas sim a Filosofia do Direito, de Hegel. Nota a diferença de tempo histórico entre a Alemanha e o Ocidente. As Revoluções francesa e inglesa aboliram o antigo regime e estabeleceram o estado nacional moderno como expressão da sociedade burguesa. Foram realizadas por uma classe mas experimentadas como representativas por nações inteiras. Nem sempre isto é possível. Uma classe tem de evocar um momento de entusiasmo, em si mesma, e nas massas que a reconhecem. “Só em nome de direitos universais da sociedade pode uma classe particular reclamar governo geral para si”. Não bastam o Selbstgefühl, o pathos espiritual e a energia revolucionária. Deve também existir uma outra classe que se experimente como a esfera onde se pratica o crime notório contra o todo da sociedade, de modo a que a libertação desta classe surja como libertação geral. Por exemplo, a importância negativa-geral da nobreza francesa e do clero condicionou a importância positiva-geral da burguesia francesa como emancipadora.

    A Alemanha ficou para trás porque o ancien régime continuou a existir. Nem tem uma classe cuja rudeza a tornasse representante negativa da sociedade, nem uma outra classe com energia e audácia revolucionária suficientes para se identificar com o povo. Cada classe da Alemanha está ainda envolvida em luta com as classes inferior e superior. O Estado moderno libertou o homem, na medida em que as diferenças de religião e de propriedade já não determinam diferenças de estatuto político para o indivíduo. O estado político perfeito é, por sua natureza, a vida genérica do homem. Contudo, a estrutura da vida egoísta mantém-se fora da esfera do Estado. O homem tem uma vida dupla; na comunidade política, vive como ser genérico, na sociedade vive como indivíduo privado. Ainda não chegou à liberdade através da completa socialização. Mas precisamente porque na Alemanha a situação política é anacrônica, os alemães podem radicalizar a idéia do Estado moderno. Em política, os alemães sempre pensaram o que os outros fizeram. Poderão os alemães p.613 e ss. levar a cabo uma revolução à la hauteur des principes?

    Na oposição entre a Alemanha e outras nações ocidentais, Marx é quase nacionalista. Considerava-se um autor que poderia extrair consequências práticas da filosofia hegeliana do Estado mas duvidava que os alemães a levariam a cabo. Como poderia a Alemanha fazer a revolução sem os passos intermédios já dados por outras nações européias? Talvez um dia a decadência geral, Verfall, da Europa tornasse a revolução política possível. A emancipação alemã não seria obra de uma classe particular mas do proletariado que, simultaneamente, faz e não faz parte da sociedade burguesa.

    O proletariado é um “estamento” que é a dissolução de todos os estamentos, esfera social cujo carácter universal é devido ao sofrimento universal. É contra ele que se comete a injustiça em geral: de seu só tem a humanidade; por isso só se emancipa a si, emancipando a todos. Como é um zero de humanidade, pode ser um ganho total. Quando o proletariado anunciar a dissolução da ordem presente do mundo, apenas revelará o segredo da sua existência que é dissolução desta ordem do mundo. O proletariado será a arma material da filosofia, emancipador do homem: “A filosofia não se pode tornar realidade sem abolir o proletariado, o proletariado não se pode abolir a si próprio sem realizar a filosofia”.

    Marx reflecte na Reforma protestante, o passado teórico da Alemanha, uma revolução que começa pela especulação, que quebrou a fé na autoridade e instalou a autoridade de uma fé. Libertou o povo da religião externa mas deixou a religião interna. O protestantismo revelou a questão – combater o sacerdote – mas não deu a resposta certa. A luta contra o “padre exterior” foi ganha. Agora é preciso iniciar a luta contra o “padre de dentro”. A guerra dos camponeses quebrou-se contra o muro da nova teologia protestante. Agora, no século XIX, ocorreu a destruição dos símbolos dogmáticos na geração de Strauss, Bauer, Feuerbach e Marx. Neste sentido, o marxismo é o produto final de um dos ramos do protestantismo liberal alemão.

    3.4. Emancipação e alienação.

    “Toda a emancipação é redução do mundo humano, das relações, ao próprio homem”. A emancipação religiosa liquidará a consciência imaginadora de deuses. A emancipação política converterá o indivíduo em cidadão. O homem individual ficará emancipado quando se tornar um ser com essência genérica (Gattungswesen); quando reconhecer as suas forças como forças sociais e quando não mais separar a força social da política. A ultrapassagem do Estado é uma questão de tempo, cuja estrutura se assemelha à ultrapassagem da religião: “A constituição política foi até agora a esfera religiosa, a religião da vida popular… o céu da generalidade em oposição à existência terrena…A vida política é a escolástica da vida popular”.

    A alienação é o passado, a emancipação o futuro. O homem auto-alienado perde-se no além religioso, político, social, etc. O cerne da filosofia marxiana da história consiste em prever o fim das vicissitudes nas relações entre homem e natureza. O processo histórico comporta a origem animal do homem, as fases do processo de produção em que participa, a fase de auto-alienação e as possibilidades de emancipação revolucionária.

    Os pressupostos reais da história crítica são os indivíduos reais, as suas acções e as condições materiais de vida. O homem distingue-se dos animais ao produzir os meios de vida(Lebensweise) desde a reprodução sexual e a divisão de trabalho ao nível familiar, até ao nível local, tribal e mercado mundial. O desenvolvimento das idéias é paralelo na política, direito, moral, religião e metafísica. A consciência é só ser consciente (bewußstes Sein). As ideologias são produto do processo material. Não possuem história própria. A história crítica deverá substituir a filosofia.

    O processo material de produção é a substância irredutível da história. O trabalho humano é alienado pela especialização decorrente dos conflitos inerentes à divisão de trabalho nas condições da produção industrial para um mercado mundial. A consolidação do nosso produto em sachliche Gewalt é um notável factor de evolução. O trabalho não produz apenas mercadorias; produz também o trabalhador como mercadoria. O trabalhador torna-se servo do seu objecto, nega-se a si próprio no seu trabalho. É apenas um meio de satisfazer necessidades exteriores ao seu trabalho. O trabalhador poderá sentir-se livre no desempenho das funções animais de comer, beber, procriar, alojar e ornamentar-se. Mas na função especificamente humana, permanece um animal. Na abstracção que o separa da esfera de acção humana, torna-se tierisch. Só a ciência e a beleza podem conferir forma ao que o homem produz. A actividade produtiva que distingue e vida humana é degradada ao nível de meio de ganhar a vida. A existência livre torna-se meio para existência física. Esta alienação da produtividade humana é inerente à divisão de trabalho e não se resolve por aumentos salariais que nada mais são do que formas de melhorar a sorte de escravos; não conferem maior dignidade nem destino ao trabalhador. Proudhon pede a igualdade de rendimentos: mas isso apenas tornaria a sociedade em capitalismo para todos e não só para alguns. Nenhuma organização social consegue controlar as condições de existência em sociedade.

    Estas considerações provam que Marx não estava particularmente impressionado pela miséria dos trabalhadores. A reforma social não era um remédio para o mal que tinha em mente. O mal é o crescimento da estrutura econômica da sociedade moderna até se tornar em poder objectivo ao qual o homem se submete completamente. Entre esses males contam-se: 1) Separação entre operário e instrumentos. 2) Dependência do emprego face às empresas; 3) A divisão do trabalho tal como é praticada é um insulto à dignidade humana; 4) A especialização, para aumentar a produtividade destrói a qualidade do produtor 5) A interdependência econômica gera acções fora do controle humano e social.

    3.5. O homem socialista.

    Que espera Marx da revolução comunista? Por estranho que pareça, as características do futuro homem socialista estão estreitamente relacionadas com o sistema industrial de produção. Marx queria reter o sistema industrial e abolir a especialização humana. O novo homem deveria ser um dia poeta, noutro dia operário, depois pescador, etc. Ser tudo de todas as maneiras sem ter de ser nada. (Ideologia Alemã, p.22) A revolução é necessária para que o homem ganhe auto-determinação (Selbstbetätigung) e assegure a sua existência. Consistirá na apropriação da totalidade das forças produtivas e terá carácter universal. O proletário é o instrumento ideal desta revolução. Como não está limitado (borniert) por um tipo especial de propriedade, pode subsumir a propriedade em todos. A associação universal de proletários à escala mundial pode quebrar o poder da estrutura actual econômica e desenvolver a energia e carácter necessários para a revolução. Depois o trabalho será transformado em auto-realização. A comunidade ultrapassará a divisão de trabalho e cada um poderá subsumir as forças produtivas e desenvolver plenamente as faculdades humanas.

    O indivíduo total, ou o homem socialista, é o objectivo da história. A libertação da propriedade seria o último acto deste drama. Só é independente o ser que se sustenta pelos seus próprios pés, que só deve a existência a si próprio, que cria a sua própria vida. E embora a idéia de criação esteja enraizada na mente humana, o ser-por-si da natureza vai contra todas as experiências tangíveis (Handgreiftlichkeiten) da vida prática. Onde começa a grande corrente de ser? Marx proibe essa pergunta! Tais abstracções não têm sentido. O homem que não pôe questões é o homem socialista.

    3.6. Comunismo em bruto e comunismo verdadeiro

    A essencialidade (Wesenhaftigkeit) do homem na natureza torna a busca de uma essência além da natureza como inessencialidade (Unwesentlichkeit) do ser alienante divino. Deixará de ser preciso o ateismo como negação de Deus enquanto condição de posicionamento da existência do homem. O socialismo é a auto-consciência positiva da realidade humana sem a mediação da negação religiosa. (Manuscritos 1844, 3, pp.125 e ss.) O comunismo é uma contra-idéia que visa ultrapassar um estado histórico; não é uma reforma institucional; é uma mudança na natureza do homem.

    O comunismo em bruto (roher Kommunismus) pretende a propriedade privada geral e o nivelamento social. É movido pela inveja e é uma manifestação de selvajeria, Niedertracht, na comunização dos bens e das mulheres. O socialismo ou verdadeiro comunismo, wahre Kommunismus, Sozialismus, é o regresso do homem a si mesmo como ser social. É um naturalismo humanístico com a solução do conflito entre o homem e a natureza (Ms. 1844 pp.114-116).

    3.7. Manifesto Comunista. Dezembro de 1846 – Janeiro 1848.

    O Manifesto realiza a naturalização do homem e a humanização da natureza. Como documento de propaganda, nada acrescenta às ideias já expostas. Mas é uma obra-prima de retórica. No preâmbulo, o autor fixa a escala do seu pronunciamento. Trata-se um processo mundial, de um espectro que paira sobre a Europa. Este reconhecimento obriga o novo mundo dos comunistas a clarificarem as suas oposições ao velho mundo reaccionário. A primeira secção desenvolve a perspectiva histórica do comunismo. A história é luta de classes. A visão da sociedade moderna é ainda mais simplista e maniqueista, pois refere apenas a burguesia e o proletariado. A burguesia nasceu dos servos da Idade Média para conquistar o mundo. O seu papel revolucionário na história foi destruir as idílicas relações patriarcais e feudais. Fez milagres maiores que as catedrais, pirâmides e aquedutos; criou a produção cosmopolita, a interdependência das nações, a literatura mundial, fez o campo depender da cidade, o bárbaro do civilizado, o Oriental do Ocidental. Marx louva a burguesia em termos que jamais burguês algum utilizou, fazendo recordar o orgulho absurdo de Condorcet. O esplendor da burguesia é, porém, transitório porque será ela substituida pelo proletariado em várias fases da luta. No começo, há apenas indivíduos que lutam contra a opressão local. Com a indústria, a opressão generaliza-se. As associações de operários terão vitórias e derrotas. A proletarização crescente da sociedade lança grupos educados no proletariado. Surgem os renegados de classe devido à desintegração social. Os burgueses ideólogos juntam-se aos operários, com o que se atinge a época de Marx e Engels.

    A segunda secção do Manifesto lida com a relação entre proletários e comunistas. Aqui surgem ideias novas sobre a condução do processo político. Os comunistas não são um partido em oposição a outros partidos operários mas representam o todo. É o dogma fundamental do partido comunista. Não têm que estabelecer princípios próprios distintos do movimento proletário. O que os distingue não é um programa próprio mas o nível universal da sua prática. É a chamada fórmula da vanguarda: os comunistas são a secção mais resoluta dos trabalhadores; são seus objectivos formar o proletariado em classe, derrubar a burguesia, conquistar o poder político. O resto da secção lida com a exposição e defesa dos objectivos finais do comunismo. As ideias comunistas não resultam deste ou daquele reformador (Weltbesserer ). São a expressão das relações actuais de poder na luta de classes. As teses comunistas não são pedidos programáticos para mudar a situação; pelo contrário, revelam a situação e sugerem tendências inerentes ao processo, até se conseguir a sua realização plena. Os comunistas querem abolir propriedade privada. E então ? Quase ninguém a possui ! E se os capitalistas a perderem será expropriação ? Não, porque o capital é poder social, resulta da actividade comum. Se o capital fôr convertido em propriedade social apenas perde o seu carácter de classe. O que os adversários chamam expropriação apenas transforma a situação actual em princípio de ordem pública. O mesmo tipo de argumento é depois aplicado às críticas contra a abolição do casamento burguês, nacionalidade, religião e verdades eternas.

    As teses do comunismo elevam a marcha da história à consciência. Fornecem a intuição da ordem que está por vir. Condorcet está presente nesta ideia de um directório que conduz a humanidade, na marcha para o reino da liberdade. Como a história não marcha por si, o directório irá dar uma “mãozinha”: a arma é o proletariado como classe extra-social, sem propriedade nem nacionalidade. A conquista do poder será um processo prolongado. Primeiro, a ditadura do proletariado; é preciso centralizar os instrumentos de produção, descapitalizar a burguesia, organizar a classe proletária, aumentar a produção. Através de intervenções despóticas na propriedade, o poder público perderá o seu carácter político por deixar de ser instrumento de classe. Virá então a livre associação em que a liberdade de cada um é condição para liberdade do outro. O Manifesto termina com o célebre apelo, “Proletários nada tendes as perder senão as cadeias. Uni-vos”

    3.8. Tácticas.

    Em 1850, no Discurso à Liga Comunista, Marx indicara que o principal problema não era a conquista imediata do poder mas a aliança com os grupos democráticos que o tinham alcançado, até que fosse possível traí-los após vitória futura. É a situação da Frente Popular, depois repetida em 1930 e no pós-guerra. É interesse dos comunistas fazerem a revolução permanente para que a pequena burguesia não fique contente com ganhos iniciais. Os comunistas não estão interessados em mudanças na propriedade privada mas na sua abolição; não lhes interessam reformas da sociedade velha, mas a sua liquidação. Todos os meios serão bons para manter a excitação das massas; promessas ao proletariado e ameaças à burguesia; a violência de massas deve ser organizada:”Os pedidos dos trabalhadores devem ser sempre guiados pelas concessões e medidas dos democratas”.

    3.9. Conclusão

    Na raiz da idéia marxiana está uma doença espiritual, a revolta gnóstica de quem se fecha à realidade transcendente. A incapacidade espiritual aliada à vontade mundana de poder provoca o misticismo revolucionário. A proibição das questões metafísicas acerca do fundamento do ser; “Será possível negar Deus e manter a razão?” destrói a ordem da alma. Mas a par desta impotência espiritual há a vitalidade de um intelecto que desenvolve uma especulação fechada. As Teses sobre Feuerbach mostram que o homem marxiano não quer ser uma criatura. Rejeita as tensões da existência que apontam para o mistério da criação. Quer ver o mundo na perspectiva da coincidentia oppositorum, a posição de Deus. Cria um fluxo de existência em que os opostos se transformam uns nos outros. O mundo fechado em que os sujeitos são objectos e os objectos actividades, é talvez o melhor feitiço jamais criado por quem queria ser divino. Temos de levar a sério este dado para compreender a força e a consistência intelectual desta revolta anti-teista.

    Por outro lado, Marx compreendeu que o crescimento gigantesco das instituições econômicas num poder de influência determinante da vida de cada pessoa, inutilizava qualquer debate acerca da liberdade humana. É o único pensador de estatura do século XIX que tentou criar uma filosofia do trabalho humano e uma análise crítica da sociedade industrial. A sua obra principal Das Kapital não é realmente uma teoria econômica como as de Smith, Ricardo, Mill. Está cheia de defeitos nas teorias do valor, do juro, da acumulação de capital. É sim uma crítica da economia política, uma tentativa de revelar os supostos nos conceitos da teoria econômica e assim chegar ao centro da questão, ou seja, a relação do homem com a natureza e a uma filosofia desta relação, ou seja, o trabalho. Cento e cinquenta anos após Marx é duvidoso que qualquer escola de teoria econômica tenha suficientemente desenvolvido este ponto.

    O diagnóstico é bom. O sistema industrial está permanentemente ameaçado por impasses, por revoluções adiadas e pela subida do nível de vida. O resultado seria o comunismo bruto. Na sua construção da história, Marx concebeu o desenvolvimento das formas econômicas numa humanidade abstracta com um apêndice de ideologias. De facto, o desenvolvimento ocorre em sociedades históricas com vida espiritual.

    Podemos chamar “magia” à trasladação da vontade de poder do domínio dos fenômenos para o da substância ou à tentativa de operar nesta como se fosse o domínio dos fenômenos. A tendência para estreitar o campo da experiência humana à area da razão utilitária e pragmática; a tentação de a tornar a preocupação exclusiva do homem; a tentação de a tornar socialmente preponderante por pressão econômica e por violência, fazem parte de um processo cultural que visa operar a substância humana através de uma vontade planeadora pragmática. Mas o sonho de criar o super-homem que sucederá à criatura divina, a idéia do indivíduo total que se apropria das faculdades do sistema industrial, para a sua auto-actividade, são empiricamente irrealizáveis. A mudança da natureza humana através da experiência da revolução é um estéril misticismo intramundano. Compreendemo-lo melhor se compreendermos Marx.

     

    GLOSSÁRIO

    der vergesellschaftete Mensch: homem socializado

    umstülpen inverter Gattungswesen: ser genérico descoberto no ser individual

    sachliche Gewalt: poder objectivo dos produtos que nos rodeiam

    sinnliche menschliche Tätigkeit: actividade humana sensorial

    Selbstbetätigung: Auto-determinação, apropriação de forças produtivas

    Fetischcharakter der Warenwelt: Carácter de feitiço das mercadorias

    Handgreiftlichkeiten: experiências tangíveis da vida prática

    roher Kommunismus: Comunismo em bruto,propriedade privada geral

    wahre Kommunismus, Sozialismus: verdadeiro comunismo/socialismo

    Wesenhaftigkeit: essencialidade do homem na natureza

    Unwesentlichkeit: inessencialidade do ser alienante divino

    Lebensweise: processo de produção material

    http://www.endireitar.org/site/home/80-karl-marx-segundo-eric-voegelin?showall=1

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