O Estatuto das Guardas Municipais e a municipalização do policiamento

Enviado por Jorge Lima

Há alguns anos escrevi um texto, publicado aqui, defendendo a municipalização do policiamento ostensivo. O Congresso deu um importante passo nesse sentido com a aprovação do Estatuto das Guardas Municipais. Para que se avance mais na modernização do modelo atual, é preciso acabar com o Inquérito Policial, estabelecer Juizados de Instrução e instituir a carreira única nas polícias estaduais.

Do Conjur

Polícia Municipal é a novidade na área da segurança pública no país
 
Por Vladimir Passos de Freitas

Escrevo Polícia mesmo sabendo que o nome é Guarda Municipal, porque, na realidade, é de Polícia mesmo que se trata. O rótulo não altera o conteúdo. O Senado aprovou no dia 16 passado o PL 39/2014 que cria o Estatuto Geral das Guardas Municipais, cujo texto ainda não foi disponibilizado na internet. Face ao interesse que o assunto desperta, escrevo valendo-me do Projeto de Lei 1.332 que desde 2003 tramitava na Câmara dos Deputados e que foi aprovado naquela casa em 23 de abril passado.

Segurança e saúde são as duas grandes preocupações da maioria da população brasileira. A segurança não atende os padrões mínimos para um país que quer ocupar espaço entre as nações mais desenvolvidas. Se fôssemos falar das mazelas na área, cujos órgãos há décadas padecem de falta de estrutura, esgotaríamos os limites do texto. Fiquemos apenas na mais recente e surpreendente declaração.

O Secretário da Segurança Pública do Rio Grande do Norte, ao comentar o aumento dos assaltos após o fim da Copa do Mundo, afirmou que os comerciantes deveriam ter a sua segurança própria, pessoal (clique aquipara ler). Este conselho, vindo da autoridade máxima estadual, reconhece a falência do Estado e orienta os comerciantes a criar sua guarda própria, mesmo sabendo que isto seria inútil, porque os seguranças não poderiam portar arma de fogo. Só faltou sugerir que fossem criadas milícias, como no Rio de Janeiro, para dar proteção mediante pagamento de uma taxa mensal.

Polícia ou Guardas Municipais existem em alguns países, como o México, Argentina e Itália. Nos Estados Unidos elas são bem desenvolvidas e possuem um papel ativo na segurança pública. Consulte-se, por exemplo, osite da Central de Polícia de Denver, Colorado.

No Brasil, o PL 39/2014 do Senado foi aprovado rapidamente e por unanimidade, estimulado pela perda do controle do Estado na área da segurança. O tema suscita polêmicas. De um lado situam-se os que veem na nova Polícia um benéfico reforço em área deficiente. Do outro, posicionam-se os que afirmam que a nova Polícia acabará se prestando aos interesses políticos do prefeito, além de criar uma superposição de atribuições que vai gerar conflitos com outros  órgãos policiais. Na verdade, tais discussões agora são inúteis. O Estatuto foi aprovado e depende apenas da sanção presidencial. Pode haver veto de um ou de outro artigo. Mas não afetará o conjunto. Em torno de um mês passaremos a viver uma nova realidade.

É certo que os municípios de médio e grande porte já possuem a sua Guarda Municipal, Civil ou Metropolitana. Todavia, ela agora se apresenta sob novo figurino. A base, como antes, será o artigo 144, parágrafo 8º da Constituição, que dá-lhes poderes de proteção de seus bens, serviços e instalações. Portanto, a essas guardas cabe, antes e depois do Estatuto, zelar pelas ruas, parques, jardins, monumentos, serviços prestados (como no trânsito) e instalações (escolas e os bens que nelas se integram).

A diferença entre o antes e o depois é que até o Estatuto recém-aprovado não havia uma norma comum que as integrasse. Agora, porém, elas terão um mínimo de uniformidade. No entanto, suas atribuições dificilmente ficarão contidas nos limites do artigo 144, parágrafo 8º da Constituição. Vejamos.

O artigo 5º, inciso II, dá às Guardas poder de “coibir infrações penais” e o inciso III o de  “atuar, preventiva e permanentemente, no território do Município, para a proteção sistêmica da população”. Evidentemente, nas duas hipóteses, mencionam-se bens, serviços e instalações municipais. Mas, no calor de uma ocorrência, quem será o hermeneuta a decidir de quem e a competência? E ele será obedecido?

O mesmo artigo nos incisos V fala em colaborar para a pacificação dos conflitos que atentem contra os direitos fundamentais das pessoas. A interpretação pode concluir que à Guarda caberá solucionar rusgas de vizinhança, pequenas cobranças, atos aéticos como o descaso da família no trato de um idoso. Em suma, uma ressurreição das antigas funções dos Juízes de Paz. Estranho.

Os incisos XIII e XIV suscitarão prolongadas discussões. A Guarda atenderá ocorrências emergenciais quando deparar-se com elas e encaminhará ao Delegado de Polícia o autor de infração pilhado em flagrante. Esse tipo de procedimento é feito pela PM. Fácil é prever a ocorrência de conflitos entre as duas corporações. Ainda mais que o estado de emergência é subjetivo, nem sempre bem definido.

Outras atividades atribuídas à Guarda estão plenamente ajustadas à sua previsão constitucional e não geram maiores dúvidas. Entre elas, exercer funções no trânsito, proteger o patrimônio ecológico, histórico e cooperar com os demais órgãos da defesa civil.

Outros dispositivos merecem comentário.

Boa iniciativa é exigir que os integrantes da Guarda sejam concursados (artigo 9º) e que os cargos de direção sejam, por eles, exercidos após quatro anos da criação (artigo 15, parágrafo 1º). Não se elimina, mas, pelo menos, diminui o caráter político da nomeação, algo comum nos municípios.

Nas exigências para a investidura (artigo 10) os requisitos são os de sempre, mas a lei municipal poderá estabelecer outros. E aqui, com olhos postos no futuro, seria bom que se exigisse dos concursandos exame psicotécnico. Afinal, os integrantes da GM enfrentarão, armados, situações complexas e deles se exige equilíbrio emocional. Na mesma linha preventiva, em caso de má conduta, mesmo que não hajam vítimas, o juiz poderá proibir que o agente porte arma de fogo (artigo 16, parágrafo único). É preciso evitar ao máximo os riscos.

O controle através de corregedoria própria e de ouvidoria (artigo 13) é oportuno, mas, poucos acreditam na sua efetividade. Tudo indica que ele, na vida real, será exercido pelo promotor de Justiça da comarca. As GMs terão uma linha de telefone direta, com o número 153 (artigo 18). Boa medida.

O Estatuto não disfarça uma certa espécie de aversão à Polícia Militar. Proíbe seus integrantes de terem formação ou aperfeiçoamento nas Academias da PM (artigo 12, parágrafo 3º), de ficarem sujeitos a regulamentos militares (artigo 14, parágrafo único) e até de utilizar denominações idênticas, títulos, uniformes, distintivos e condecorações (artigo 19). Este repúdio não condiz com o espírito de cooperação que deve existir entre órgãos afins, cria animosidade por prevenção contra uma Polícia que, exceções à parte, tem prestado bons serviços à população brasileira. O artigo 19 chega a ser ridículo, porque, eliminando títulos rejeita denominações de uso internacional (como  Tenente) e obriga a criação de outros, desconhecidos da população e que serão diferentes em cada município.

Finalmente, a efetividade. Serão as GMs um órgão a auxiliar a população brasileira no combate à criminalidade? Ou um órgão a mais a consumir recursos pagos pelos contribuintes? Seria oportuno que fossem convidados os cérebros mais privilegiados e os expertos no assunto para que esta nova fase comece bem. Nesta linha sugere-se que:

1) O Ministério da Justiça criasse um Guia de Condutas destinado aos prefeitos, com sugestão de atos de gestão das referidas Guardas, Guia este a ser feito com o auxílio de pessoas que tenham tido experiências de sucesso em outros países. Da mesma forma um Guia de  Conduta para os novos agentes, com modelos práticos dos limites de suas atividades e formas de conduzir-se.

2) Os Tribunais de Justiça assumissem seu papel político e tão logo surjam os primeiros conflitos de atribuições entre a GM e outras polícias, editem Súmulas, a fim de orientar os órgãos de segurança. Não se pode esperar que esta orientação venha de órgãos do Poder Executivo, porque diferenças partidárias dificultarão as soluções. O Judiciário pode e deve fazê-lo através das Súmulas, deixando o comodismo e participando ativamente do problema. Atualmente, poucos TJs têm dado atenção às Súmulas, como se percebe em pesquisa do Ibrajus, sendo o do Rio de Janeiro o mais efetivo.

Aí está a novidade, ainda pouca avaliada pela população, porém com resultados em futuro próximo. Esperemos que dê bons resultados.

 é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Vice-presidente para a América Latina da “International Association for Courts Administration – IACA”, com sede em Louisville (EUA). É presidente do Ibrajus.

 

Redação

10 Comentários

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  1. O problema que teremos em

    O problema que teremos em concecer poder de policia para as guardas municipais seria a criação de verdadeiras guardas pretorianas no pais.

    Imagine o que prefeitos de cidades do interior da nação e mesmo nas grandes cidades nao poderiam fazer dispondo de orgaos policiais para atraves deles pressionar ou perseguir desafetos?

    Talvez uma possibilidade seria conceder poder de policia para corporaçoes que tiverssem efetivo acima de 5 000 homens para minimizar a formaçao dessas guardas pretorianas.

    Só sei que enquanto se manter  formato atual de segurança publica onde o policial é alguem que nao esta sob o alcance da lei e sim imune a ela, quantas mais corporaçoes com poder de policia tivermos pior ficara a situação da segurança publica…

  2. As anomalias de um estado

    As anomalias de um estado aparelhado ofuscam qualquer brilho de modernidade que se queira implementar. Como assim os tribunais assumirem seu papel político e legislarem pois o poder executivo estaria sujeito a influências partidárias, impossibilitado dessa forma, de regulamentar a efetividade dos serviços criados? Por meio de súmulas? Praticamente todas as regulamentações e elaboração de projetos de leis, são elaborados por advogados ou profissinais do direito. Como os tribunais e outros órgãos do poder judiciário, exclusivos de advogados. Não estariam esses senhores também sob a influência de grupos de poder, desses que permeiam todos os partidos e instituições? Muitos municípios implantaram o seu conselho de segurança. E funcionam para melhorar a segurança ou fazer com que a segurança dos grupos de poder não corra riscos caso determinado partido não afinado com suas orientações vença eleições? A droga por ex, tanto como saúde como combate ao crime organizado, demanda soluções do poder público. Dos três poderes. O que pensar então quando esses conselhos e forças institucionais apoiam explicitamente candidatos que são simpáticos aos aeroportos clandestinos tanto para aviões como para helicópteros? E o pessoal das súmulas e dos HCs, supostamente livres das influências partidárias, com que candidatos afinam? Parecem estar sempre afinados com o que pensa a grande mídia. Não são muitas as coincidências?

  3. Falta de memória

    Um horror!

    Como se o exemplo das PMs não bastasse.

    Vão colocar arma e poder na mão de gente despreparada cuja consequência é mais insegurança e arbítrio.

    Parece que não aprendemos mesmo.

    Quando esses quardas começarem a matar indistriminadamente e a agirem fora do direito será tarde.

     

  4. Pois eu acho que é uma boa

    Pois eu acho que é uma boa idéia. Porque, sendo a guarda somente do municipio, o cidadão e o guarda desenvolverão algum vínculo entre eles, e, esse conhecimento mútuo, irá humanizar o policiamento e, isso, me parece algo positivo.

  5. Dúvida

    “uma Polícia que, exceções à parte, tem prestado bons serviços à população brasileira”

    Por que então a população não confia nela? Parece haver confuso entre exceção e norma…

    70% dos brasileiros não confiam no trabalho da polícia, diz estudo
    Índice cresce 8,6 pontos porcentuais em relação ao primeiro semestre de 2012 e se aproxima da credibilidade dos partidos políticos
    05 de novembro de 2013 | 12h 33
    Renan Carreira – Agência Estado

    SÃO PAULO – A insatisfação da população com a polícia cresceu no primeiro semestre de 2013 em relação ao mesmo período do ano passado. Segundo o Índice de Confiança na Justiça Brasileira (ICJBrasil), realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) para integrar a 7ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 70,1% dos brasileiros não confiam no trabalho das diversas polícias no País, 8,6 pontos porcentuais acima do registrado no primeiro semestre de 2012.

    O fórum destacou que a credibilidade das polícias está mais próxima da apresentada pelos partidos políticos (95,1% dos brasileiros afirmam que não confiam em legendas políticas) do que pela apresentada pelas Forças Armadas (34,6% não confiam), o que, mostra o documento, indica a necessidade de rever a atuação dos agentes de segurança pública.

    De acordo com o fórum, as atuações das polícias desde as manifestações iniciadas em junho são apenas um ponto que precisa ser revisto da atual política de segurança.

    80% das vítimas de violência não procuram a polícia
    Pesquisa da Secretaria Nacional de Segurança Pública ouviu 78 mil pessoas em cidades com mais de 15 mil habitantes
    05/12/2013 – 17:13

    A Secretaria Nacional de Segurança Pública, em parceria com o Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública, divulgou pesquisa realizada com 78.000 pessoas de 346 municípios com mais de 15.000 habitantes. Na coleta de dados realizada entre 2010 e 2012, oito em cada dez pessoas disseram ter sido vítima de crimes e ofensas, mas não procuraram a polícia para registrar a ocorrência. A violência aconteceu nos 12 meses anteriores à pesquisa.

    As menores taxas de notificação aos órgãos de segurança são registradas na região Nordeste (15,8%), especialmente na Paraíba (11%), na Bahia (13,7%), no Rio Grande do Norte (14,2%) e em Pernambuco (14,6%). Entre as capitais, João Pessoa (PB) tem a taxa mais baixa (8,5%), seguida por Salvador (12,2%) e Natal (15,1%).

    De acordo com o levantamento, aproximadamente 80% dos entrevistados disseram confiar pouco ou não confiar nas polícias Militar e Civil. E 60% sentem que a criminalidade aumentou nos últimos 12 meses.

    Veículos – O roubo de carros apresentou maior taxa de notificação (90%), seguido pelo roubo de moto (80,7%). Os casos em que as vítimas procuram menos a polícia são discriminação (2,1%), ofensa sexual (7,5%), fraudes (11,6%) e agressões (17,2%).

    Quem mais relata crimes e ofensas à polícia são vítimas que compõem a classe A (22,9%) e têm nível superior (24,2%).

    Entre as 78.000 pessoas ouvidas pelo levantamento, 14,3% dos entrevistados sofreram algum tipo de agressão ou ameaça no último ano e 10,7% viveram episódios de discriminação.

    (Com Agência Brasil)
     

  6. Ao seguir o modelo de

    Ao seguir o modelo de hierarquia da PM, as guardas municipais ja comecaram completamente erradas.

    Essa “policia” e apenas mais um grupo de capitaes do mato nas ruas para perseguir e tormentar os cidadaoes comuns. Facilmente corrompiveis, farao tudo que as elites economicas os mandarem fazer (porrada, prisao e morte aos PPP). Eh mais do mesmo, digo, eh mais daquilo que ha de mais errado em nossas cidades.

    Eis ai um lugar onde o modelo Americano pode funcionar menos mal. Esse negocio de soldado raso, cabo, sargento, officiais, etc.. eh bom para as forcas armadas. Numa policia, todos tem que ser oficiais e ser devidavemte preparados para carregar a imensa responsabiliada que eh guardar nossas vidas e nossas leis.

    1. Conviria ler todo o texto antes de opinar

      Porque uma das características mais importantes do Estatuto é, justamente, proibir nomenclaturas militares para os cargos das guardas municipais. A outra é a estruturação em carreira única.

      1. Verdade!
        Eh um modelo melhor,

        Verdade!

        Eh um modelo melhor, a principio. Espero que se aproxime mais do cidadao a quem devem proteger, se isso for feito ja sera um grande avanco. Mas havera problemas, como em ha em todas as atividades humanas. O modelo tem que ser aberto o suficiente para acomodar melhorias, que virao a ser necessarias.

    2. Guardas Municipais

      Amigo creio que você esta enganado, pois o estatuto desvincula treinamentos futuros as guardas, uniformes semelhantes, insígnias, nomenclatura entre outras diretrizes, as policias militares, e também as guardas são treinadas de acordo com a matriz curricular do Senasp, que ensina o uso estrito de força necessária e proporcional nas ocorrências. Abraço.

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