O Matusalém dos cineastas: Manoel de Oliveira (1908-2015)

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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O Matusalém dos cineastas: Manoel de Oliveira (1908-2015)

Walnice Nogueira Galvão

No mês passado, morreu aos 106 anos um gigante das telas, o cineasta português Manoel de Oliveira. E estava filmando, ainda.

Depois de passar trinta anos sem pôr a mão na câmera, queria recuperar o tempo perdido. E desde que voltou à arte, em grande estilo, após a Revolução dos Cravos (1974), que restaurou a democracia em Portugal, já sexagenário, devotou-se a fazer um filme atrás do outro. Poderíamos jurar que tinha passado esses trinta anos fantasiando os filmes que não fazia e que permaneciam represados em sua imaginação criadora. Doravante, passaria a ter pressa.

Admirador dos clássicos da literatura, tanto dedicava uma película a Flaubert como a Eça de Queiroz ou a Camilo Castelo Branco. É assim que Mme. Bovary se tornou Vale Abraão, enquanto Singularidades de uma rapariga loura e Amor de perdição conservaram o título literário.

Outras vezes, sem se ater a uma ficção preexistente, gravava no celulóide um enredo escrito especialmente para cinema, produzindo obras portentosas como Non, ou a vã glória de mandar, em que a frase do padre Antonio Vieira preside a uma recapitulação crítica que trata com severidade o colonialismo português, desde tempos remotos até as guerras de libertação de Angola e Moçambique. Ou, em Um filme falado, consagrava várias sequências às principais nacionalidades mediterrâneas, fazendo um navio de cruzeiro visitar as cidades europeias e árabes que costeiam o mar, representantes de grandes civilizações, para culminar num atentado terrorista. Homem educado e cultivado, íntimo das artes e das letras, fosse com base na literatura ou dispensando-a. saía-se bem em diferentes gêneros, seu enorme talento adequando-se à versatilidade.

Originário da cidade do Porto, no norte do país, estreara, em tempos remotos, retratando os camponeses do torrão natal, às margens do rio Douro. Seu primeiro documentário, Douro, faina fluvial (1931), tornou-se um clássico de cinemateca. Daí em diante, a par com seu primeiro filme de ficção, Aniki-Bobó (1942), fincaria o padrão de uma carreira que nada teria de ortodoxa. Esses dois filmes, apesar de raríssimos, seriam obrigatórios na formação de qualquer cinéfilo.

Quem, desde cedo, fez sua reputação foi a França. Como ninguém ignora, esse país prestigia o cinema-arte como nenhum outro. Para começar, foram franceses, os irmãos Lumière, que o inventaram. Não contentes com isso, inventaram também a cinemateca, pelas mãos de Henri Langlois, que teve a ideia de preservar filmes como se fossem livros, e criou a primeira delas, que dirigiu pessoalmente até a morte, em Paris. O exemplo parisiense deu filhotes no mundo todo, e até no Brasil, onde Paulo Emílio Salles Gomes, discípulo de Langlois, criou a nossa, com sede em São Paulo.

Curiosa pela intransigência é a trajetória de Manoel de Oliveira. Sua vocação se manifestou cedo, nos anos 1930 e 1940. Entretanto, molestado pela censura salazarista, refratária aos projetos que propunha, cedo desistiu de sua arte. Nunca se prestou a fazer concessões, mantendo-se fiel a seu público de pequenas salas e festivais. Coisa rara, nunca se entregou a um cinema massificado.

Essa profissão de fé, crítica ao barateamento da arte, encontra-se escancarada na produção luso-francesa Vou para casa (Je rentre à la maison), na qual Catherine Deneuve contracena com John Malkovich e Michel Piccoli. Este, num papel e num desempenho extraordinários, personifica um visível alter-ego do diretor. Brinda-nos com uma meditação sobre a velhice e sobre o cair do pano na vida de um artista orgulhoso que se esquiva a ter um preço. Vemo-lo encenando no teatro uma peça de Ionesco e outra de Shakespeare, e também concordando em fazer uma adaptação para o cinema do Ulisses de Joyce – tudo coisa finíssima e da maior dignidade. Ao mesmo tempo, recusa um papel ridículo num seriado de tevê.

Assim era Manoel de Oliveira, um grande artista.

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita na FFLCH-USP

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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