Operação Gringo: cooperação entre ditaduras do Cone Sul

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Jornal GGN – O grupo de procuradores “Justiça de Transição” do MPF, que investiga os crimes da ditadura no Brasil, descobriu provas inéditas da cooperação latino-americana para deter a resistência e a reabertura política brasileira. Entre os documentos, registros com o nome de 80 estrangeiros monitorados pela repressão brasileira foram encontrados no sítio do tenente-coronel Paulo Malhães, ex-agente da repressão morto este ano.

Sugerido por Mara L. Baraúna

João Batista Figueiredo em visita oficial à Argentina é recebido pelo Presidente Jorge Rafael Videla - Orlando Brito / Agência O Globo

De O Globo

Operação Gringo: documentos são maior prova de cooperação  entre as inteligências latino-americanas

Encontrada pelo MPF no sítio do coronel Paulo Malhães, documentação detalha o uso de infiltrados em entidades e mostra como os estrangeiros foram monitorados.

Por Chico Otavio e Raphael Kapa

RIO E BRASÍLIA – De terno marrom, gravata quadriculada e mãos dadas com o filho Andrés, de 9 anos, até o portão de embarque, o jornalista Norberto Habegger, de 37 anos, parecia um executivo partindo da Cidade do México para uma viagem de negócios ao Rio naquele 31 de julho de 1978. No bolso, porém, o passaporte falso em nome de “Hector Esteban Cuello” indicava outra intenção. Enquanto os cariocas se recuperaram do baque na Copa do Mundo, vencida pela Argentina no mês anterior, Norberto, um importante dirigente da organização guerrilheira Montoneros no exílio, chegava à cidade para uma reunião secreta com dois companheiros. Seu objetivo: planejar a “contraofensiva”, série de ações políticas e militares destinada a derrubar a ditadura instalada em seu país dois anos antes.

E isso era tudo o que se sabia sobre os últimos momentos do montonero. Norberto Habegger desapareceu no Brasil sem deixar vestígios. Na época, o governo brasileiro só admitiu a entrada de “Hector”, sem registro de saída.

Do armário empoeirado de um chalé na Baixada Fluminense, surge agora uma prova inédita de que os militares brasileiros não apenas souberam da presença de Habegger no país, como seguiram os seus passos e registraram o seu desaparecimento, que representou para eles a queda da base de resistência montonera no Brasil. Os papéis secretos com o nome do jornalista e outros 80 estrangeiros monitorados pela repressão brasileira foram encontrados pelos procuradores do grupo “Justiça de Transição”, do Ministério Público Federal, no sítio do tenente-coronel Paulo Malhães, ex-agente da repressão morto no dia 24 de abril deste ano.

JANOT DIZ QUE DOSSIÊS SÃO MAIOR PROVA DA CONDOR

O achado, composto por dois dossiês de capa preta (“Relatório nº 8/78 – Palestra”, de 111 páginas, e “Operação Gringo/Caco”, de 166 páginas), ambos produzidos pela Seção de Operações do Centro de Informações do Exército (CIE), entre 1978 e 1979, já foi entregue pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, ao Ministério Público Federal argentino. Para Janot, as investigações revelaram a maior prova até hoje obtida da Operação Condor, a colaboração efetiva entre os regimes ditatoriais do Cone Sul para a prática de crimes de lesa-humanidade:

– A Operação Gringo, braço da Condor, foi ocultada da população durante muitos anos e só agora veio a público pelo trabalho do MPF. As gerações presentes e futuras têm o direito e a obrigação de conhecer todos os fatos e todos os crimes e violações ocorridos, para que não mais se repitam.

O menino que aparece com a camisa do Flamengo na última foto do desaparecido é hoje o cineasta Andrés Habegger, que esteve no Rio, na semana passada, para rodar “El (im)posible olvido” (“O (im)possível esquecimento”), documentário sobre os últimos dias do pai. Ao ver os papéis, ele se emocionou:

– A documentação é forte, muito interessante. Está explícita, clara, está em palavras a colaboração dos Exércitos argentino e do Brasil. Tudo que ajude a saber um pouco mais, em caso até daqueles que estão diretamente envolvidos com desaparecidos, é milagroso.

Os militares brasileiros acreditavam, na época, que o Brasil fazia parte do “Departamento América”, divisão montonera que atuaria no exílio comandada por Elbio Alberione, ex-sacerdote “de codinome Gringo”, apontado pelos agentes como o segundo nome no comando da organização.

Os dois dossiês, além da lista nominal dos vigiados, traz uma série de compilações de outros relatórios, explicações sobre os grupos brasileiros e estrangeiros monitorados, gráficos mostrando o avanço e o recuo das esquerdas no Brasil, além de informação dos cerca de 130 monitorados, entre brasileiros, alemães, bolivianos, chilenos, americanos, italianos, soviéticos, venezuelanos e, principalmente, argentinos.

Os agentes vigiaram até as autoridades diplomáticas do Alto Comissariado das Nações Unidas (Acnur), que tiveram as entradas e saídas do país monitoradas, e os católicos da Cáritas. As duas instituições formaram a base da rede de solidariedade a cerca de 20 mil exilados das ditaduras latinas no período. Com a provável ajuda da repressão argentina, o escritório do CIE no Rio chegou a infiltrar um informante nas fileiras montoneras no Brasil.

Os militares suspeitavam da presença de “130 a 200” guerrilheiros argentinos em território nacional, integrando “tropas especiais de agitação” e “tropas especiais de infantaria”. Habegger, considerado um dos líderes do grupo, aparece três vezes na papelada. As duas primeiras, no dossiê “Palestra”, no qual o jornalista é citado “na relação dos argentinos envolvidos na Operação Gringo que registram antecedentes” — dados supostamente obtidos pelo CIE com a ditadura argentina.

A terceira referência a Habegger, no dossiê “Gringo” (Relatório nº 11), já é de dezembro de 1979 e o dá como desaparecido. O documento sugere que o desaparecimento reduziu o poder de articulação do grupo no Brasil: “Desde 1977 até o desaparecimento do montonero Norberto Habegger, o Brasil era a mais importante base na América do Sul desta organização subversiva”.

Os dossiês servirão de base para uma investigação conjunta dos MPFs do Brasil e da Argentina, fruto de um acordo de cooperação internacional firmado entre os dois países.

Além de documentos, ainda é possível buscar provas testemunhais. Nas pesquisas para o documentário, Andrés descobriu que três membros da inteligência argentina – Enrique José Del Pino, Alfredo Omar Feito e Guillermo Victor Cardozo, que se encontram presos por outros crimes políticos – teriam vindo ao Rio, com a ajuda dos militares brasileiros, para buscar o seu pai. De acordo com o cineasta, Norberto foi visto pela última vez no Campo de Mayo, um dos maiores centros clandestinos de detenção do regime argentino.

A advogada Nadine Borges, integrante da Comissão Estadual da Verdade do Rio que recolheu depoimentos de Malhães em fevereiro deste ano, desconfia que Habegger é o mesmo argentino que o coronel admitiu ter sequestrado no Rio e entregue à polícia vizinha:

– Malhães contou sobre uma operação em que usou uma droga para sedar um argentino e transportá-lo até o seu país de origem em um avião como se estivesse morto e com documentos falsos. Quando ouvi o relato, pensei logo no caso do Norberto, mas não tinha provas. Agora, com os papéis encontrados, não tenho dúvida.

EX-SARGENTO ADMITIU PRISÃO E MORTE DE ARGENTINO

O ex-sargento do CIE Marival Chaves, que serviu com Malhães na ditadura, já contou aos procuradores do grupo “Justiça de Transição”, em depoimento recente, que ficou sabendo, por um agente de codinome Bastos, que, na época, um homem foi preso em São Paulo, morto, encaixotado e despachado para a Argentina. Ele não identificou o nome da suposta vítima.

A prisão, segundo Marival, foi uma operação conjunta do CIE com a inteligência argentina. O ex-sargento disse que agentes do Chile e da Argentina foram enviados para o Brasil, para trabalhar sob o comando dos órgãos brasileiros, com a missão de obter informações sobre pessoas de seus países que ingressaram no Brasil, sobretudo Rio de Janeiro, sob a proteção do Acnur.

Dois movimentos argentinos mereceram uma atenção especial dos agentes envolvidos na operação: os montoneros e o Exército Revolucionário do Povo (ERP), que tiveram suas trajetórias e suas principais lideranças detalhadas. Trinta e cinco anos depois da data do último dossiê, as autoridades brasileiras e argentinas buscam agora compreender a atuação de suas inteligências para a aniquilação desses grupos:

– A atuação do Ministério Público Federal busca a reconciliação legítima de nossa sociedade com seu passado e sua História. Bem como a eficácia do entendimento universal de que graves violações de direitos humanos são imprescritíveis e não passíveis de anistia – afirmou o procurador-geral da República, Rodrigo Janot

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

4 Comentários

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  1. Depois dessa, os comandantes

    Depois dessa, os comandantes das forças brasileiras deverão refazer aquele relatório em que afirmaram não haver desvio de função dos órgãos de estado na ditadura. Essa colaboração, agora documentada, foi criminosa.

  2. a afirmação de janot no final

    a afirmação de janot no final é gratificante para

    os que querem revelar a verdade deste obscuro e cruel período.

  3. Tem um tucano que fica nos

    Tem um tucano que fica nos posts negando conspirações (refiro-me das reais e não das fantasiosas) e coisas do tipo, como se fossem superstições. Então em notícias como esta os caras somem, não dão uma palavra. A última piada é negarem o caráter imperialista, belicista e intervencionista dos EUA sobre a América Latina e o Brasil, que os EUA consideram como “quintal deles”.

    Depois quando chamo esses caras de coxinhas, eles chiam. E estou sendo gentil com o termo pois esse tipo de liberalzinho “moderado” costuma fazer mais estrago a médio e longo prazo que os ditos coxinhas com a agenda americanófila deles.

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