Os 45 anos do assassinato de Vírgilio, primeira vítima da ditadura

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Sugestão de Alan Souza

do Blog de Mário Magalhães

O 1º desaparecido da ditadura: há 45 anos, matavam Virgílio Gomes da Silva

Mário Magalhães
 
blog - virgilio de bicicleta

Virgílio Gomes da Silva (1933-1969), um brasileiro – Foto arquivo de família

Nesta segunda-feira, 29 de setembro de 2014, faz 45 anos que agentes da Operação Bandeirante prenderam e torturaram até a morte o operário Virgílio Gomes da Silva.

Comandante militar da organização guerrilheira Ação Libertadora Nacional, Virgílio foi preso de manhã e padeceu até algum momento entre  a noite daquela segunda-feira e a madrugada do dia seguinte, 30 de setembro de 1969.

Seu corpo jamais foi devolvido à família. Conhecido pelo nome de guerra “Jonas”, Virgílio tornou-se o primeiro “desaparecido político” da ditadura parida em 1964. Há mais de 130 deles, e muitos filhos, irmãos, mães, pais e amigos ainda sonham em se despedir dos seus mortos com um enterro digno.

Virgílio tinha 36 anos ao ser assassinado. Assim eu introduzi o seu perfil, no capítulo “O boxeur da ALN criava passarinhos”, da biografia “Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo” (Companhia das Letras):

“No Nordeste de 1930, de cada mil bebês nascidos, 193 não chegavam a um ano. As paisagens dos rincões mais miseráveis se ensombreciam com os cortejos para sepultar os ‘anjinhos’, corpos sem vida acomodados em pequenos caixões de madeira ou papelão _ali a mortalidade infantil batia nas centenas por milhar. Virgílio Gomes da Silva veio ao mundo em 1933, num desses sítios desgraçados, no agreste do Rio Grande do Norte. Quis o destino que driblasse a estatística fúnebre e se somasse à dos sobreviventes: das dez crianças a que sua mãe deu à luz, ele foi uma das quatro que cresceram. Não muito, na verdade: já adulto, declarou 1,62 metro de estatura ao requerer um documento. Estava no lucro, na família em que a menina Creuza, sua irmã, desmaiava de fome. Camponês retirante, em 1951 se despediu da terra infértil para tentar a sorte em São Paulo. Não lamentou sua fortuna: deu duro como camelô, contínuo e metalúrgico. Corria do bairro proletário de São Miguel Paulista, onde vivia, à praça da Sé, para queimar calorias e permanecer na categoria peso galo”.

Na biografia “Marighella”, Virgílio é o único personagem, além do protagonista, que tem direito a dois títulos de capítulos. Conto como o trucidaram em “A queda do GTA e os gritos de Jonas“.

Uma testemunha revelaria que os beleguins berravam, enquanto torturavam Virgílio:

“A guerra acabou, filho da puta!”.

O guerrilheiro, que menos de um mês antes liderara o sequestro do embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick, gritava de volta:

“Estão matando um brasileiro!”.

O que fizeram com um cidadão sob custódia do Estado, conforme narrei no livro:

“Daí em diante, do martírio de Jonas restaram vestígios no laudo do exame necroscópico que a ditadura ocultou. Hematomas, escoriações e equimoses escureceram rosto, braços, mãos, joelhos, tórax, abdome, o corpo inteiro. As depressões nos pulsos, típicas de dependurados no pau de arara, mediram um centímetro. O ‘hematoma intenso’ na ‘polpa escrotal’ era compatível com eletrochoques no órgão. Com bicos de calçados, tora de madeira ou pedaço de ferro, fraturaram-lhe três costelas. Na parte superior do crânio, produziram um ‘hematoma intenso e extenso’. Em toda a superfície do encéfalo, um ‘hematoma irregularmente distribuído’. Fraturaram e afundaram o osso frontal do crânio. A autópsia concluiu que Virgílio ‘veio a falecer em consequência de traumatismo cranioencefálico (fratura do crânio)’, provocado por ‘instrumento contundente’. Uma fotografia mostrou o lado esquerdo da cabeça mais afundado que o direito”.

Seu cadáver foi examinado no Instituto Médico-Legal de São Paulo e sumiu em seguida. As autoridades da ditadura para sempre negaram que tivessem assassinado o brasileiro ou soubessem do seu paradeiro.

O laudo da necropsia descrevendo como ele foi morto e as fotografias mostrando-o deformado foram arquivados pela polícia política com a anotação “não podem ser informados”. Trinta e cinco anos mais tarde, descobri esse tesouro histórico no velho acervo do Dops, hoje sob guarda do Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Poderia ter mantido o “furo” histórico comigo, até o lançamento da biografia de Carlos Marighella, mas não conseguiria me olhar no espelho. Imediatamente, entreguei tudo à família, para que tivesse mais chances de encontrar os restos mortais do guerrilheiro. Até hoje o empenho comovente não obteve sucesso, embora ninguém jogue a toalha.

Muitos dos assassinos de Virgílio Gomes da Silva foram identificados e estão vivos, beneficiados pela impunidade que incentiva as futuras gerações a repetir a covardia.

Horas depois de matar Virgílio, a ditadura prendeu sua viúva, Ilda, e três dos filhos do casal. Tudo se passou assim:

“Também questionaram Ilda sobre Marighella. Ela portava documentação falsa. Virgílio instruíra o primogênito Vlademir, de oito anos, a se apresentar como Dorival. Virgilinho, de seis, virou Vicente. A caçula Isabel tinha quatro meses. A camionete que os transportava capotou na estrada para São Paulo, ninguém se machucou, e a mãe abraçou os filhos. Na Oban, um murro quebrou os dentes frontais de Ilda, que provou do cardápio de pau de arara e barbárie. Os sádicos inquiriam sobre o paradeiro do marido morto. Para desespero da mãe, prometeram surrar as crianças, até o bebê, e doá-las”.

“Primeiro a avistar o comboio militar em São Sebastião, o pequeno Vlademir se deu conta: ‘Estou em cana’. A Oban não encaminhou os meninos aos parentes, mas à sede do Dops, onde passaram dois dias trancados. Ao sair, não foram devolvidos aos avós, com quem ficara Gregório, o irmão de um ano e nove meses que também esperava pelo embarque para Cuba. Mandaram-nos para o Juizado de Menores. Lá tratavam Vlademir pelo nome, e ele reagia:

‘O meu nome é Dorival!”’

“Instada a solucionar o problema, uma tia abordou-o, e Vlademir não traiu o pai. Disse que nunca a vira mais gorda ou mais magra, e a mulher abriu o berreiro, julgando-o vítima de lavagem cerebral. Uma das maldades impostas a Ilda na Oban era anunciar Isabel, cuja amamentação fora interrompida, e em seguida dizer que a enganaram e que o bebê morreria de fome. O berçário do Juizado era iluminado por lâmpadas roxas. De madrugada, Vlademir e Virgilinho se esgueiravam até a cozinha, abasteciam a mamadeira com leite da geladeira e alimentavam a irmãzinha. Com medo de que fossem dados a famílias diferentes, os meninos passaram a dormir no chão ao lado de Isabel. Um se amarrava ao outro, e cada um prendia uma parte da roupa no berço. Se sentissem qualquer movimento, acordariam para lutar e impedir a separação.”

“Quando lhe permitiram rever o bebê na cadeia, dali a meses, a mãe se emocionou tanto que fraturou pé e tornozelo. Tempos depois, os Silva se mudaram para Cuba, onde os quatro filhos de operários se formariam na faculdade. Virgílio cultivava o hábito de assobiar ao voltar para casa. A ilusão do assovio persistiu por uma década nos tímpanos de Virgilinho. Já homem-feito, ele foi pai de um menino, que orgulhosamente batizou como Jonas.”

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

4 Comentários

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    1. A primeira vítima foi a Constituição e a liberdade nela expressa

      Lê e não entende o que lê.

      Não me consta que as vítimas de Guararapes estiveram desaparecidas.

      Incapacidades como essa explicam as posições que tem..

  1. uma ultura que não tem o

    uma ultura que não tem o direito de

    enterrar seus entes queridos

    viverá sempre com medo não só

    da morte sob tortura 

    como da vida aob o

    pesadelo de sofrer novas torturas,

    físicas ou psicológicas.

    se não tivermos o direito de buscar a

    verdade das nossas ruínas do passado,

    como omudaremos o presente e o futuro?

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