Renato Pompeu, o anti-gênio do jornalismo brasileiro

Quando entrei como estagiário da revista Veja, nos longínquos 1970, Renato Pompeu já era uma lenda. Ou melhor, uma anti-lenda. Ao contrário de outros nomes consagrados, não cultivava o mise-en-scene, os tics de fala, os lides empolados. E sempre que possível expunha o lado ridículo desse jogo de cena.
 
Já era considerado dos melhores textos da revista.
 
Para entender o contexto, depois de um período atribulado, Veja se firmara e seus jornalistas passaram a se considerar deuses no Olimpo da mídia brasileira. Todos eram brilhantes, do revisor ao editor, tinham opiniões definitivas sobre tudo e, nos intervalos de fechamento, o exercício preferido consistia em “sacar” imagens, ironias nas falas mais banais.
 
Outro dos tics preferidos era reforçar um raciocínio levantando o pulso e esfregando os dedos, como se as ideias descessem dos céus, fossem filtradas pelos dedos e entrassem no cérebro brilhante.
 
E havia os tics de fala, a maneira peculiar de atender o telefone, de saudar ou destruir uma matéria, de se dirigir aos repórteres.
 
Pesadão, Renatão arrastava o corpanzil pelo corredor, parecia alienado do que se passava à sua volta, mas estava ligado em tudo. 
 
Um dos brilhantes editores, alma boníssima, jornalista competente, mas chegado ao jogo de cena, costumava atender os telefonemas com um sonoro “aaalôôôô”. Virou sua marca registrada.
 
Certo dia, Renatão parou do lado da sua sala e gritou:
– Fulano, você se lembra do Orlindo Marçal (era um radialista de Campinas)?
 
Do outro lado da parede, um abafado “não”.
 
– Pois ele tinha um programa ao vivo e falava “aaalôôô”, igual você. Sabe o que aconteceu com ele? Um dia entrou um ouvinte e perguntou: “Orlindo, você sabe como o cachorro fala?”. E o Orlindo: “Auau”. “E o gato?”. Orlindo: “Miau miau”. “E o viado?”. Orlindo: “Não sei”.  E o gaiato: “Ele fala, aaaalôôô”.
 
Matou a marca registrada do editor.
 
Vez por outra, Renatão era internado com problemas nervosos. Mas ironizava seus proprios problemas
 
Depois de ficar um tempo afastado da redação, encontro-me com ele que me diz ter conhecido uma amiga minha em um sanatório
 
– E o que ela estava fazendo por lá”.
 
– Ela estava louca.
 
– E você.
 
– Eu também estava louco, ué.
 
Seus problemas foram descritos na melhor literatura, através de seus livros. 
 
Texto brilhante, escritor impecável, o talento de Renatão tinha que conviver com a absoluta incapacidade de administrar as menores coisas do dia a dia.
 
Enquanto vivos, o casal Sérgio Pompeu e esposa cuidaram de Renatão como se cuida de um filho distraído.
 
Lembro-me um dia dos anos 80, na Folha. Depois de um plantão de sábado convidei Renatão a almoçar em casa. Devorou uma bandeja inteira de quibe. Lá, conheceu minha primogênita, a Mariana, então com dois ou três anos.
 
Saiu apaixonado. No final da tarde recebo um telefonema angustiado da sua cunhada, querendo saber de seu paradeiro. Só foi encontrado à noite, depois de ir a alguns orfanatos atrás de alguma criança para cuidar.
 
Nos últimos tempos perdi contato com Renatão. Sua morte traz à lembrança a importância e o caráter da família Pompeu, ele e o inesquecível Ségio Pompeu, secretário de redação da Veja e o maior conhecedor da alma humana que o jornalismo já teve..
 
Luis Nassif

8 Comentários

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  1. Salman Rushdie

    Certo ano, Salman Rushdie escreveu sobre os versículos satânicos e deu no que deu, o cabra estava com a cabeça a prêmio, os jênios do mesão JT pediu para Renatão decifrar os tais versos… Renatão leu no original o tal alcorão em tres dias e não viu nenhum versículo satãnico, o resto é bem hilário em volta daquele mesão…

  2. Um grande escritor, injustamente pouco lido e reconhecido.

    Um dos melhores romancistas brasileiros, Renato Pompeu nunca teve o devido reconhecimento. Extremamente original, além de escrever muito bem, não sacrificava seu estilo e criatividade à comunicabilidade fácil, apesar de escrever romances extraordinários sobre temas populares e brasileiríssimos: futebol (A saída do primeiro tempo), carnaval (Samba-enredo), culinária (Dialética da feijoada) e a vida dos trabalhadores (A greve da rosa), etc. 

  3. Que descanse em paz e que se

    Que descanse em paz e que se cultive a sua memória. A Renato Pompeu só tenho a agradecer.

    Foi um dos jornalistas que me formaram como leitor de algum senso crítico, numa Veja que quase nada tem a ver com sua repugnante versão atual. Os últimos artigos dele que li acho que foi na “Caros Amigos”.

    Aprendi com seu conhecimento enciclopédico. Uma vez numa das festas do “Voz da Unidade” passei por ele, me voltei e disse para mim mesmo: eis o Renato Pompeu, autor de tantos bons artigos que alguma coisa me ensinaram.

    Depois que soube dos seus problemas pessoais meu afeto por ele só cresceu (“Nada que é humano me é estranho”, dito do romano Terêncio, e o preferido de Marx, segundo o próprio Karl, autor caro a R. Pompeu).

     

  4. Renatão é das melhores

    Renatão é das melhores lembranças que guardo de meus tempos na Veja.

    Figura fantástica, conhecimento enciclopédico, senso de humor agudo, ferino, mas do qual  que nunca  se valia para

    menosprezar criaturas de nível cultural abaixo do seu (na verdade, a maioria esmagadora das pessoas)…. 

    Gostaria de escrever muito mais sobre ele. Mas não consigo, o abalo que senti com sua morte não deixa.

    Com perdão pelo lugar comum, Renato Pompeu é desses seres humanos que quando vão embora para sempre levam

    consigo uma parte de nós mesmos. 

    1. Jairo:
      O Renato, quando era

      Jairo:

      O Renato, quando era preciso, disparava seus “ganchos” com muita força e precisão… Certo dia, na Folha dos anos 80, discutiu com Leão Serva sobre uma chamada para a primeira página. Serva, na época pouco mais que foca, guindado a secretário de redação, exigiu mudanças no texto, de forma autoritária. O Renato, inconformado, lhe disse:

      — “Leão, você é o rei dos animais!”

      Creio que foi assim que deixou o jornal.

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