Terror, civilização e barbárie, por Aldo Fornazieri

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Aldo Fornazieri

1 – Líderes ocidentais, comentadores, analistas e jornalistas (nem todos, é verdade), não hesitaram em classificar os atentados terroristas de Paris como um conflito entre a civilização e a barbárie, entre o Ocidente livre e islamismo radical violento e desumano. A disjuntiva é de todo falsa e se funda na presunção arrogante ocidental que se pressupõe a civilização universal.

2 – O conceito de “civilização” se erigiu em contraposição ao conceito de “bárbaro”. No mundo grego, os bárbaros eram os não-gregos, os estrangeiros, particularmente os orientais, especificamente os persas. Mas os gregos não negavam que os povos não-gregos constituíssem civilizações, culturas e valores próprios.

3 – No contexto da República Romana entendia-se que Roma expressava a civilização mais avançada, uma síntese de todas as outras civilizações, a confluência superior de todas as outras histórias. Os outros povos não estavam impedidos de se civilizarem. Caberia aos romanos a missão de integrá-los à civilização. Mas durante o Império houve uma mudança do conceito de civilização. Ele foi assimilado aos romanos em oposição aos estrangeiros, aos “de fora”, em particular os germânicos. Criou-se uma polaridade excludente entre a “civilização e os bárbaros”. Estes deveriam ser submetidos ou exterminados. Na medida em que o cristianismo tornou-se a religião oficial do Império ele foi investido como um componente essencial da suposição da civilização universal.

4 – O projeto Iluminista moderno, assumindo a ideia de “razão” como essência singular e distintiva da qualidade de “homem civilizado”, adota a perspectiva do Império Romano para o conceito, mas define a missão de civilizar todos os povos que estariam fora da civilização, assimilada ao Ocidente. Nesta perspectiva, o historiador italiano Giambattista Vico define a barbárie como o estado primitivo e selvagem do qual o homem foi saindo processualmente para chegar a uma ordem estatal e política civilizada. Ordem que não seria uma garantia permanente já que, Vico sugere que a Idade Média seria uma espécie de retorno à barbárie.

5 – A partir do conceito romano-iluminista de civilização entende-se que ele designa as formas mais elevadas da vida de um povo, a sua arte, a sua cultura, a ciência, a tecnologia, a religião etc. Esta noção, evidentemente, está baseada na adoção de certos valores que não são, necessariamente, universais. A partir desse assentamento, o Ocidente cristão passou, cada vez mais, a autoreferir-se como “civilização universal”.

6 – Mas, com o aparecimento das obras dos historiadores Oswald Spelgler (O Declínio do Ocidente) e de Arnold J. Toynbee (Um Estudo da História), a ideia de uma civilização única, exclusiva, etnocêntrica e universal, perdeu o sentido. Eles mostraram que as civilizações não são monoculturais, mas plurais; que não são eternas, mas que nascem, se desenvolvem, alcançam o apogeu, declinam e desaparecem. Toynbee vai relacionar 21 civilizações.

7 – Samuel Hungtinton (Choque de Civilizações) define as civilizações como entidades culturais. A civilização é o mais elevado agrupamento cultural de pessoas e o nível mais amplo de identidade cultural. Define-se quer por elementos objectivos comuns, como a língua, a história, a religião, os costumes e as instituições, quer pela auto-identificação subjectiva das pessoas. Em uma mesma civilização podem coabitar várias cultuas e várias religiões. Mas, em alguns casos, como o Islamismo, a religião é a identidade cultural mais ampla e ela define a civilização islâmica.

8 – Supor que a “guerra ao terror” é uma guerra da civilização contra a barbárie é descabido, pretencioso e arrogante e se constitui em um elemento que procura legitimar a dominação e a violência do Ocidente contra outros povos. Hungtinton aponta três pontos importantes para entender o atual contexto de conflito com o terror: a) a pretensão universalista do Ocidente fomenta guerras civilizacionais e a violência e isto poderá levar a uma guerra de grandes proporções. O Papa Francisco afirma que já está em curso a III Guerra Mundial; b) o declínio relativo do Ocidente estimula processos de desocidentalização de outros povos; c) pela primeira vez na história as relações internacionais são, ao mesmo tempo, multipolares e multicivilizacionais. A paz mundial pressupõe o reconhecimento desta realidade e o diálogo intercivilizacional, enfatizando os elementos e valores comuns às civilizações. 

9 – O terrorismo não pode ser aceito, apoiado ou desculpado por perpetrar uma violência gratuita contra inocentes e por toda a sua inconsequência moral e política. Mas, como já observaram alguns intelectuais, o terrorismo precisa ser compreendido. Sartre, escrevendo a respeito, afirmou o seguinte: “Eu reconheço que a violência, sob qualquer forma que se manifeste, é um fracasso. Mas um fracasso inevitável, porque estamos num universo de violência. E, se é verdade que o recurso à violência contra a violência se arrisca a perpetuá-la, também é verdade que é o único meio de fazer com que ela cesse”. Esta última frase é polêmica, pois ela leva não só a compreender o terrorismo, mas, em determinadas circunstâncias, a apoiá-lo. Alguns intelectuais que advogam a necessidade de compreender o terrorismo, sustentam que é preciso apostar no caminho da não-violência para quebrar o círculo da violência que vem sendo uma constante na história da humanidade.

10 – Talvez, de fato, estejamos vivendo o fracasso da ideia da construção de uma civilização humana, mesmo que ela comporte a perspectiva da integração multicultural e multicivilizacional. A violência entranhada na natureza humana, o antropocentrismo destrutivo da natureza e de outras espécies, a ditadura dos desejos, o individualismo consumista, a destruição da esfera pública e da vida comunitária, o crescimento da desigualdade e a prevalência de um capitalismo inconciliável com a sustentabilidade ambiental e social são ingredientes assustadores que indicam o fracasso da ideia de homem do Iluminismo como ser racional que marcha para a civilização e, ao menos, confirma a tese de Jean-François Mattei, segundo a qual a civilização e a barbárie são as duas “máscaras adversárias e cúmplices, de uma mesma e única humanidade”. Para ele a barbárie está no sujeito mesmo, está em nós, não é um “acidente infeliz da história”. Esta perspectiva cética, porém, não nos desobriga de lutar pela contenção da barbárie e pela construção de um horizonte pacífico do convívio humano.

11 – O Ocidente cristão não tem legitimidade de reivindicar o universalismo civilizatório para si. Afinal de contas, em nome de seus valores, dizimou povos, massacrou os indígenas das Américas, criou a escravidão moderna, saqueou riquezas e obras de arte em toda parte, fez as duas guerras mundiais, gerou o horror do nazismo, contribui para manter bilhões de seres humanos na pobreza e na miséria etc. O atual terrorismo islâmico é filho direto do Ocidente, da destruição do Iraque, do incentivo à oposição radical na Síria da invasão da Líbia e do Afeganistão etc.

12 – O terrorismo islâmico tem causas históricas mais antigas. No final da I Guerra os árabes foram traídos pela França e Reino Unido, pelo acordo secreto Sykes-Picot, que estabeleu as respectivas zonas de influência e protetorados das duas potências européias no Oriente Médio, traindo a promessa da criação de um Estado árabe independente. A criação do Estado de Isarael, da forma em que se deu, com a humilhação dos árabes e o massacre de palestinos, é outra fonte geradora de violência que continuará ativa enquanto o problema não for resovildo. Jovens no mundo árabe e filhos de imigrantes na Europa vivem sem esperanças, na pobreza e sem futuro. As guerras provocadas pelo Ocidente no Oriente Médio geram ondas de desesperatos que invadem a Europa, morrem pelos caminhos e se afogam nos mares. É a globalização da indiferença, como disse o papa Francisco.

13 – A indignação e a consternação do Ocidente em face dos atentados de Paris são seletivas e hipócritas. No Iraque, em outros países orientais e na Áfica ocorrem atentados diários que vitimam milhares de pessoas. A América Latina é a região mais violenta do mundo. No Brasil mata-se, por ano, mais do que várias zonas de guerra juntas. O que se percebe é a indiferença e a falta de capacidade de indignação. Isto também evidencia que a barbárie está dentro de nós.

Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

12 Comentários

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  1. “Não foi um atentado contra a

    “Não foi um atentado contra a França, foi contra a humanidade”. Foi mais ou menos isso que o presidente do país que detonou duas bombas atômicas sobre populações civis, que lançou bombas de napalm no Vietnã, que mentiu na ONU pra justificar a invasão do Iraque, que ajudou no nascimento do ISIS, que tem uma agência de inteligência que atua na derrubada de governos não submissos e que, recentemente, bombardeou hospital no Afeganistão declarou sobre o atentado terrorista em Paris. A hipocrisia do grande país do ocidente “civilizado” e civilizatório já está dano no saco!

  2. Somente o calo do francês dói?

    Do IG:

    A ofensiva contra a considerada ‘capital’ do Estado Islâmico ocorre dois dias depois de o grupo extremista assumir a autoria da série de ataques em Paris, que deixou pelo menos 129 pessoas mortas.

    Vinte bombas foram lançadas. Segundo o Ministério de Defesa da França, vários alvos foram atingidos, incluindo um centro de comando, um depósito de munição e um campo de treinamento para combatentes.

      

     

  3. bom texto professor…

    …só não concordo com Vico ao remeter à toda a Id. Média a ideia da barbárie… Era, como toda épóca e suas sociedades, excludente, mas nção dotada de razão – verum, pulcrum, Umberto Eco (Arte e Beleza na Estética Medieval) e outros escritores-pesquisadores de mesmo quilate souberam descontruir esta ideia de trevas que a cercava…

     

     

  4. Por isso um livro como o

    Por isso um livro como o Mal-Estar da Civilização, do Freud, é eterno. A briga entre barbárie e civilização, entre o desejo e a restrição a esse desejo já começa dentro de nós, entre o bicho dominado pelo mais cru instinto e o desejo de ultrapassá-lo, chegar a ser um deus,  – e é uma luta que será travada até morrermos. 

  5. No tema: super bom Painel com 3 entrevistados, Globonews

    O que estraga é William Waack que interrompe e fala mais do que os 3 juntos, exibindo sua vasta informaçãoe tratando os telespectadores como imbecis (que suponho a maioria tem o perfil e informações e pode bem acompanhar pra assistir seu Painel) Por muito pouco, irritado, quase que desligo a TV, mas os 3 entrevistados, especialmente um, foram os mais esclarecedores que já vi sobre o tema e o ataque.

    (Não sei por que o GGN não reproduz, nem toca no excelente programa, que vale muito a pena rever – aconselhável guardar tijolos, pedras, tome uma caixa de Rivotril pra aguentar Willliam. Não joguemos a água fora junto com o bebê )..

  6. Comentário.

    Partir da ideia para os fatos para, daí, fazer uma interpretação que segue uma lógica dedutiva, desculpe… alimenta o texto com mais enganos.

    Todos os pontos, TODOS, são passíveis de “mas”, “porém”, “além disto”, que quebram o texto como suposta interpretação histórica. Sobretudo aqueles em torno das teorias da história e sobre conceitos de civilização e barbárie. Apoiar-se na autoridade de uns historiadores não ajuda em nada. A titulo de ironia, só faltou o Spengler!

    Desde já, lindo exemplo civilizador do rei Leopoldo, da Bélgica (quanta ironia), apreciador das artes e assassino em massa no Congo.

    O que coloca o ponto 11 do texto de sua maneira mais estreita. A Europa não tem a menor autoridade de afirmar o universalismo dos seus valores, sobretudo pelo fato de, tanto dentro quanto fora dela, esses valores não foram advogados em sua plenitude e os poderes instituídos fizeram o possível e o impossível para que assim o fosse. Antes fosse “apenas” o cristianismo…

    No item 12, não escapa aos olhos o fato de o autor reconhecer que França e Inglaterra nunca tiraram as mãos do Oriente Médio e que ainda contam com um parceiro inestimável, os Estados Unidos. Amarre-se a isso os interesses do capital, que a coisa toda entorta.

    É uma pena que o professor pince uma frase do Sartre, quando o filósofo chegou a advogar o uso da violência como contraviolência, sobretudo na fase menos lida do filósofo, em que apoiou as lutas anticoloniais. O existencialismo foi superado, no vocabulário hegeliano, em sentido original.

    Quem criou o Estado Islâmico foi a Europa e os Estados Unidos.

     

     

  7. 13 longos tópicos para culpar

    13 longos tópicos para culpar as vítimas e para pregar relativismo tosco. Que beleza.

    Sim, a civilização ocidental é mais avançada e tolerante que o Islã. Se o Ocidente tem alguma culpa pelo “congelamento” do Islã na sua forma medieval? Provavelmente. Mas, hoje em dia, isso não tem relevância. Ficamos eternamente discutindo eventuais culpados, mas sem resolver nada. Não adianta falar que na época das Cruzadas o Islã era relativamente mais tolerante e evoluído. Pode até ser fato, mas aconteceu há 800 anos e discutir isso não ajuda a resolver a cagada atual.

    O cristianismo superou a intolerância e aceitou a separação entre Igreja e Estado há alguns séculos. O Islã, do jeito que a coisa vai, ainda vai precisar de uns séculos pra chegar nesse nível, se chegar. Não podemos impor democracia no país dos outros, mas temos, sim, a obrigação de preservar esses avanços nos nossos países. Não dá pra tolerar, como acontece hoje, clérigos radicais pregando ódio à civilização ocidental em mesquitas DENTRO DA FRANÇA E DA INGLATERRA! Esses caras tem que ser presos e deportados, imediatamente.

  8. Causou asco e vergonha a

    Causou asco e vergonha a cobertura dessa tragédia pela mídia brasileira. Como sempre, a americanófila GLOBO foi campeoníssima na pieguice e na narrativa tendenciosa, quando não desonesta. Nem de raspão tocou nas causas subjacentes de um fenômeno geopolítico complexo(relações ocidente-mundo árabe), cujas raízes deitam num passado não tão recente.

    A ênfase ao termo “mundo islâmico”, “terrorismo islâmico” é intencional: busca associar no imaginário do público o terrorismo com essa religião. 

  9. o mundo dito civilizado criou

    o mundo dito civilizado criou o holocausto,a  inquisição,

    o ódio que impregna felizmente uma camada minoritária  no brasil.

    o mundo dito civilizado mata impunemente em nome da democracia

    e desrespeita o outro com um descaramento imbecilizante.

    o mundo dito civilizado assassina reputações

    como se as pessoas  fossem objetos descartáveis

    a serem jogados no mesmo esgoto PIGmental de uma 

    direita raivosa e inescrupulosa.

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