Cora Coralina, de Goiás

Por Tamára Baranov – Rio Claro/SP

‘Este nome eu não inventei, existe mesmo, é de uma mulher que vive em Goiás: Cora Coralina… Gosto muito deste nome, que me invoca, me bouleversa, me hipnotiza, como no verso de Bandeira.’ (Carlos Drummond de Andrade)

Cora Coralina (Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas)
(Goiás, 20 de agosto de 1889 – Goiânia, 10 de abril de 1985)

Poetisa e contista, doceira de profissão, Cora Coralina não teve muito estudo, fez apenas o primário. Teve seu primeiro livro ‘Poemas dos Becos de Goiás’ publicado quando tinha quase 76 anos de idade, uma obra poética sobre o cotidiano dos becos e ruas de Goiás. Cora foi ousada; fugiu de Goiás com um homem casado com o qual viveu em São Paulo e teve seis filhos; casaram-se quando ele enviuvou e apenas idosa e viúva retornou a Goiás, à mesma casa velha da ponte, residência ancestral de sua família, hoje seu museu. Ali residiu até a morte em 10 de abril de 1985. Embora hoje seja um grande nome da nossa Literatura, Aninha, já conhecida como Cora Coralina, só foi realmente reconhecida pelo povo brasileiro quando saudada por Carlos Drummond de Andrade no Jornal do Brasil, a 27 de dezembro de 1980.

Das Pedras

Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.

Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.

Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida…
Quebrando pedras
e plantando flores

Entre pedras que me esmagavam
levantei a pedra rude
dos meus versos.
(Meu Livro de Cordel, 8. ed., p. 13, 1998)

 

Cora Coralina, de Goiás

Por Carlos Drummond de Andrade
(Caderno B – Jornal do Brasil – Rio de Janeiro, sábado, 27 de dezembro de 1980 – Pagina 7)

Este nome não inventei, existe mesmo, é de uma mulher que vive em Goiás: Cora Coralina.

Cora Coralina, tão gostoso pronunciar este nome, que começa aberto em rosa e depois desliza pelas entranhas do mar, surdinando música de sereias antigas e de dona Janaína moderna.

Cora Coralina, para mim a pessoa mais importante de Goiás. Mais do que o Governador, as excelências, parlamentares, os homens ricos e influentes do Estado. Entretanto, uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de sua invenção, e identificada com a vida como é, por exemplo, uma estrada.

Na estrada que é Cora Coralina passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os miseráveis de hoje. O verso é simples, mas abrange a realidade vária. Escutemos:

“Vive dentro de mim/uma cabocla velha de mau olhado/acocorada ao pé do borralho, olhando pra o fogo.” “Vive dentro de mim/a lavadeira do rio Vermelho. Seu cheiro gostoso dágua e sabão.” “Vive dentro de mim/a mulher cozinheira. Pimenta e cebola. Quitute bem-feito.” “Vive dentro de mim/a mulher proletária./Bem linguaruda,/desabusada, sem preconceitos.” “Vive dentro de mim/a mulher da vida./Minha irmãzinha…/tão desprezada,/tão murmurada…”

Todas as vidas. E Cora Coralina as celebra todas com o mesmo sentimento de quem abençoa a vida. Ela se colaca junto aos humildes, defende-os com espontânea opção, exalta-os, venera-os. Sua consciência humanitária não é menor do que sua consciência da natureza. Tanto escreve a Ode às Muletas como a Oração do Milho. No primeiro texto, foi a experiência pessoal que a levou a meditar na beleza intrínseca desse objeto (“Leves e verticais. Jamais sofisticadas./Seguras nos seus calços de borracha escura. Nenhum enfeite ou sortilégio”). No segundo poema, o dom de aproximar e transfigurar as coisas atribui ao milho estas palavras: “Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece./Sou o cocho abastecido donde rumina o gado./Sou a pobreza vegetal agradecida a vós, Senhor.”

Assim é Cora Coralina: um ser geral, “coração inumerável”, oferecida a estes seres que são outros tantos motivos de sua poesia: o menor abandonado, o pequeno delinquente, o presidiário, a mulher-da-vida. Voltando-se para o cenário goiano, tem poemas sobre a enxada, o pouso de boiadas, o trem de gado, os becos e sobrados, o prato azul-pombinho, último restante de majestoso aparelho de 92 peças, orgulho extinto de família. Este prato faz jus a referencia especial, tamanha a sua ligação com usos brasileiros tradicionais, como o rito da devolução: “Às vezes, ia de empréstimo à casa da boa Tia Norita/E era certo no centro da mesa de aniversário, com sua montanha de empadas bem tostadas. No dia seguinte, voltava,/conduzido por um portador que era sempre o Abdenago, preto de valor,/de alta e mútua confiança./Voltava com muito-obrigados/e, melhor cheinho de doces e salgados./Tornava a relíquia para o relicário…”

Relicário é também o sortido deposito de memórias de Cora Coralina.

Remontando à infância, não a ornamenta com flores falsas: “Éramos quatro as filhas de minha mãe./Entre elas ocupei sempre o pior lugar.” Lembra-se de ter sido “triste, nervosa e feia./Amarela, de rosto empalamado. De pernas moles, caindo à toa. “Perdera o pai muito novinha. Seus brinquedos eram coquilhos de palmeira, caquinhos de louça, bonecas de pano. Não era compreendida. Tinha medo de falar. Lembra com amargura essas carências, esquecendo-se de que a tristeza infantil não lhe impediu, antes lhe terá preparado a percepção solidaria das dores humanas, que o seu verso consegue exprimir tão vivamente em forma antes artesanal do que acadêmica.

Assim é Cora Coralina, repito: mulher extraordinária, diamante goiano cintilando na solidão e que pode ser contemplado em sua pureza no livro Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. Não estou fazendo comercial de editora, em época de festas. A obra foi publicada pela Universidade Federal de Goiás. Se há livros comovedores, este é um deles. Cora Coralina, pouco conhecida dos meios literários fora de sua terra, passou recentemente pelo Rio de Janeiro, onde foi homenageada pelo Conselho Nacional de Mulheres do Brasil, como uma das 10 mulheres que se destacaram durante o ano. Eu gostaria que a homenagem fosse também dos homens. Já é tempo de nos conhecermos uns aos outros sem estabelecer critérios discriminativos ou simplesmente classificatórios.

Cora Coralina, um admirável brasileiro. Ela mesma se define: “Mulher sertaneja, livre, turbulenta, cultivadamente rude. Inserida na gleba. Mulher terra. Nos meus reservatórios secretos um vago sentido de analfabetismo.” Opõe à morte: “aleluias festivas e os sinos alegres da Ressurreição. Doceira fui e gosto de ter sido. Mulher operaria.”

Cora Coralina: gosto muito deste nome, que me invoca, me bouleversa, me hipnotiza, como no verso de Bandeira.

http://www.youtube.com/watch?v=uFYnDzfYl94

Redação

5 Comentários

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  1. Não sei se a vida é curta ou

    Não sei se a vida é curta ou longa para nós, mas sei que nada do que vivemos tem sentido, se não tocarmos o coração das pessoas.
    Muitas vezes basta ser: colo que acolhe, braço que envolve, palavra que conforta, silencio que respeita, alegria que contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que promove.
    E isso não é coisa de outro mundo, é o que dá sentido à vida. É o que faz com que ela não seja nem curta, nem longa demais, mas que seja intensa, verdadeira, pura enquanto durar. Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina. Cora Coralina

  2. Ahhhhhh, gosto

    Ahhhhhh, gosto muito!

     

    Parabéns pelo artigo!

     

    Gosto da singeleza, da simplicidade, da caracterização verossímel presente nos versos de Cora Coralina. Figura simpática e emblemática da nossa literatura. Bela homenagem, muito oportuna à nossa saudosa poetisa.

    Uma pena não termos uma real valorização do nosso patrimônio cultural, à muitos falta a consciência da importâcia disso para o desenvolvimento saudável de uma nação.

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